Dois gêneros musicais tão diferentes, mas com algo em comum: a leveza, a suavidade. A música instrumental de Geraldo Flach e a Música Popular Brasileira de Marcelo Delacroix também são o ponto de convergência das duas personalidades dos músicos: tranquilos, leves, suaves, como um vento morno de começo de noite de verão.
Nos ensaios, esse era o clima reinante e, no espetáculo, não poderia ser diferente. A Associação Leopoldina Juvenil ficou lotada de gente querendo “se contaminar” com essa suavidade toda. Neste show, que abriu a nona temporada dos Concertos Dana, uma novidade: a cobertura do espetáculo ao vivo, via Twitter.
Na plateia, presenças ilustres de Arthur de Faria, Raul Elwanger e Jerônimo Jardim, que já estiveram no palco dos Concertos como solistas – Arthur também trabalha seguidamente como arranjador para a Orquestra de Câmara da Ulbra.
A primeira música da noite foi “Rancherinha”, de Geraldo Flach, arranjada por ele mesmo que, além de compositor e intérprete, também é maestro. “Rancheirinha” foi lançada em disco em 1993, mas é aquele tipo de música atemporal, que só foi favorecida pelo arranjo de Flach – mais rápida, mais forte, contrariando o diminutivo do título. Quem esperava tranquilidade no começo do show deve ter se surpreendido – positivamente.
A segunda música do show foi “Imagem”, composta por Luiz Eça (sim, descendente de Eça de Queirós e um grande pianista brasileiro) e Aloysio de Almeida (com quem Luiz dividiu diversas composições). A música é curta, mas tem 38 acordes e não é nada atravancada… Coisas de gênio. Marcelo Delacroix sobe ao palco para acompanhar Geraldo e a Orquestra. A letra é uma declaração de amor à música e ao palco: “É de vocês o meu cantar/ É só pra vocês nosso cantar”. O arranjo ficou por conta de Michel Dorfman.Em seguida, “Choro por Julio”, uma das músicas instrumentais mais lindas da MPB, composta e arranjada por Geraldo. O silêncio impera no Leopoldina Juvenil – não por acaso. Depois de uma chuva de aplausos, vem “Qui nem Jiló”, de Luiz Gonzaga, com arranjo de Pedro Figueiredo. Essa é uma daquelas músicas que fazem parte do que o maestro Pablo Trindade chama de “Imaginário sonoro popular brasileiro”: você conhece a música, mas não sabia. Todavia, isso ainda não é perceptível neste momento do show, em que ela é executada de forma instrumental, sem o refrão – como seria depois, no bis.
Marcelo Delacroix sobe ao palco novamente para cantar “Quintana”, uma música praticamente inédita de Geraldo – nunca foi gravada em disco e só havia sido interpretada por Nei Lisboa em um festival da canção. Marcelo cantou a homenagem de Geraldo para o mais famoso poeta gaúcho. Uma pena pensar que a maioria dos gaúchos (e fãs do poeta) desconhecem esta pérola, que define tão bem a obra de Quintana.
Por estar afônico, Geraldo chamou Delacroix para cantar a música “Abolerado blues”, composta por ele em parceria com Jerônimo. A música é uma homenagem feita para Cida Moreira, amiga dos dois. Marcelo explica antes da interpretação a história da letra, pra não ficarem achando que ele “queria ser como as cantoras do rádio, Ângela Maria”. Risos gerais. Jerônimo Jardim não sabia que a música ia ser interpretada pela Orquestra até a hora do espetáculo, e emocionou-se muito durante a execução.
A sétima música foi “Cantiga de Eira”, composição de Barbosa Lessa de 1956 e – até onde se sabe – regravada somente por Delacroix. A letra é deliciosamente brasileira, cheia de expressões do povo simples brasileiro: “‘Debuiando’ as ‘casca’ do feijão na eira”. Marcelo tem uma visão interessante sobre a música: ele acredita que o Barbosa Lessa estava fazendo uma metáfora com a humanidade, que às vezes anda, anda e não sai do lugar. Mas isso é conversa pra outra hora.Hora da triste “Inverno”, composta pelos amigos de longa data, Marcelo Delacroix e Arthur de Faria – os dois se conheceram no Ensino Médio. A letra começa: “Inverno em tudo/ Não sou ninguém, eu não sou ninguém/ Nada em mim reluz”, e a melodia é de uma melancolia tão genuína que a torna linda. O arranjo de “Inverno” foi feito por Iuri Correa – que também assinou “Quintana”.
Dois grandes momentos do show se seguiriam: “Desencanto”, uma poesia conhecida de Manoel Bandeira datada de 1912 musicada por Marcelo Delacoix, com um arranjo vigoroso de Rodrigo Bustamante. Quando Marcelo gravou essa música em seu disco, teve o arranjo do maestro uruguaio Carlos Garofale, recentemente falecido. “Passei este arranjo pro Rodrigo Bustamante que, brilhantemente, organizou estas ideias, colocou as dele junto e fez soar a música como no disco – mas com um clima diferente”, disse Marcelo, dedicando a música à Garofale. Outro grande momento foi a interpretação da belíssima “Passará”, com letra de Ronald Augusto e que abre o primeiro disco de Delacroix, Prêmio Açorianos de Melhor Disco de MPB em 2000. Aqui, a canção foi arranjada por Pedro Figueiredo.
A décima primeira música do Concertos Dana foi “Amigo do rei”, uma das músicas mais conhecidas de Delacroix, com aquele assobio inconfundível, ensolarada e alegre – outra parceria de Marcelo com Ronald Augusto. Curiosidade: foi o primeiro arranjo que Marcelo fez para uma orquestra, um desafio que, com certeza, rendeu um resultado maravilhoso. A alegria de Marcelo Delacroix é cristalina e absolutamente visível – aquele sorriso sempre presente diz tudo. Além disso, foi a primeira vez que ele tocava junto de uma orquestra, realização de um sonho.Dois momentos que definem bastante o projeto Concertos Dana desde o início: a beleza gerada pela integração entre os dois solistas convidados e a orquestra. O primeiro deles foi “Nessa Rua”, de Delacoix, cantada com uma delicadeza só dele, a interpretação do arranjo primoroso de Daniel Wolff. O outro momento foi o bis, em que Marcelo cantou “Qui nem Jiló”, antes interpretada por Geraldo – agora, todos juntos, com aquela letra inconfundível. “Quem souber a letra, pode cantar”, instiga Delacroix. A música já foi regravada por Gilberto Gil, Elba Ramalho, Gal Costa… Não é de se surpreender que as pessoas sabiam mesmo a letra.
Aplaudidos de pé, termina mais um Concertos Dana, com sorrisos largos estampados no rosto de Tiago Flores, Geraldo Flach e Marcelo Delacroix. Três sorrisos valem que mais do que todas essas palavras….
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