Salão de Atos da Ufrgs lotado, clima de Gre-nal acontecendo ao mesmo tempo que o show, músicos da orquestra acompanhando o jogo no radinho segundos antes de entrar no palco… E, no final do espetáculo, só se ouvia uma palavra que não combina em nada com clássicos de futebol: “leveza”.
Como quem domina um drible com maestria, Fernanda Takai, Nico Nicolaiewsky e a Orquestra de Câmara da Ulbra conseguiram fazer com que o resultado do espetáculo fosse um só: a alegria geral por ter presenciado um show inesquecível. E, sim, ironia das ironias: o Gre-nal terminou com um empate.
No palco, descontração total. Nico tentava disfarçar seu nervosismo de gremista fanático e começou o show com maestria: a música creditada como “Abertura” no programa do espetáculo era, na verdade, uma versão instrumental criada por Fernando Cordella para “Só cai quem voa”, do primeiro disco de Nico. É uma tradição dos Concertos Dana iniciar o show com uma música instrumental, e o solista se esmerou ao piano, junto com os dois solistas convidados para os sopros: Amauri Iablanovski (flauta e sax soprano) e Marcelo Piraino (clarinete e clarone). Nico diverte-se ao piano e vai perdendo a timidez característica. Na hora de dizer “Boa noite” ao público, já estava em casa.
A segunda canção do show foi “Feito um picolé no sol”, também de Nico Nicolaiewsky, do seu disco mais recente, “Onde está o amor”, que traz uma nova veia do compositor: a pop. A letra é dolorosa e a melodia vai crescendo devagarinho. Silêncio absoluto na plateia, todos prestam atenção na longa letra e… ela é tão abrangente que é difícil não se identificar com um trecho que seja. “Tô ficando meio assim xarop/Dessa lenga lenga, já amarrei o bode/Pode crer que tudo tem a ver com tudo/Tem a ver com o mundo/Tem a ver com ser perfeito”. Ao final da música de quase sete minutos, Nico e a Orquestra são aplaudidos efusivamente.Um dos grandes momentos do show viria em seguida: a versão de Nico para “Ana Julia”, dos Los Hermanos. Nico começou a interpretar essa canção em seu show “Música de Camelô”, mas fez tanto sucesso que o cover seguiu na turnê de divulgação de “Onde está o amor”… Com apenas Nico ao piano e um cello acompanhando. Aqui, com toda a Orquestra de Câmara da Ulbra e arranjo novo de Fernando Cordella, o ciclo fica completo. Nico não canta o refrão na versão dos Concertos Dana: ele é tocado pelos violinos da Orquestra. A ênfase que Nico queria dar era na beleza da letra, totalmente soterrada pelo imenso sucesso da música. E conseguiu: não foram poucas as pessoas secando as lágrimas insistentes no final da execução de “Ana Julia” no Concertos Dana.
A próxima música é a mais nova de Nico, escrita em parceria com Pedro Verissimo, que faz uma participação especial no Concertos Dana, em dueto com o amigo Nico. É “Bela Baila”, uma inédita que ainda não entrou em nenhum disco de Nico. Pedro está morando no Rio de Janeiro, e ensaiou a música com a Orquestra apenas no sábado. “Imagina que programão de sábado: ensaiar UMA música e passar a tarde ouvindo o Nico e a orquestra tocando essas versões lindas”, disse Pedro, antes do show começar. O dueto é dramático como a letra da canção, e o arranjo de Fernando Cordella privilegia os violinos. A voz de Pedro e Nico combinam, e esta é a primeira vez em que se apresentam juntos cantando um dueto.
Depois de Pedro sair do palco, Nico pega o acordeon, instrumento tão familiar, e diz: “a hora é agora”. Silêncio no palco e no Salão de Atos. Aos primeiros acordes de violino, Nico coloca-se ao lado do maestro e, quando abre o acordeon, a melodia familiar é reconhecida. “O maior golpe do mundo/que tive na minha vida/Foi quando aos nove anos/Perdi minha mãe querida”, o clássico do tradicionalismo gaúcho de Teixeirinha autobiográfico que narra com precisão os detalhes do garoto que perdeu sua mãe em um incêndio. A letra é primorosa por ser tão real, e Nico interpreta-a como se tivesse vivido aquilo, os violinos entrando quase com violência… Os mais atentos notam que a voz de Nico vacila, ele está emocionado. E, ao final, é aplaudido em pé, como não poderia deixar de ser. Ele ainda consegue brincar: “Calma, gente, tem mais! Isso que a Fernanda nem entrou ainda!”. Risos gerais. Nico toca a delicada “Flôr”, parceria de Nico com Silvio Marques. No novo arranjo, há um grande espaço para os instrumentos de sopro e um solo de clarinete, hora dos solistas brilharem.
Em seguida, ele chama Fernanda Takai para o palco, em clima de brincadeira, claro. Chamando-a de mineira, quando na verdade ela nasceu no Amapá, Nico lembra do período em que ficou “acampado” na casa de Fernanda e seu marido John Ulhôa, quando este último produziu o disco “Onde está o amor”. “Eu era só a garota da produção, do cafezinho. E aprendi a ferver a água do mate do Nico”, ri Fernanda. “Desde então, nunca faltou mate lá em casa. Mas deve estar vencido”, brinca ela, arrancando risadas gerais do público e de Nico. Os dois amigos cantam “A Vida é Confusão”, que aqui tem arranjo de Daniel Wolf. A música de Nico é de uma honestidade emocionante, mais uma vez um primor de letra. A música começa assim: “Não sei se foi mentira o que eu falei/Não sei se foi maldade o que eu pensei/Não sei se foi por ti/Não sei se foi por mim/Não sei/Não sei”. E o coração de toda a plateia está nas mãos dos dois, tamanha honestidade.
Depois, Fernanda introduz “Luz Negra”, dizendo que amou o arranjo que o violoncelista Arthur Barbosa fez para a canção de Nelson Cavaquinho, transformando-a num bolero. A letra, tristíssima, é acompanhada pela plateia bem baixinho, em tom de reverência. Fernanda canta com maestria o samba-fossa, que ficou com uma levada de blues na sua versão, tudo a ver com a letra desesperançada de Nelson Cavaquinho.
Para contrabalançar, entram os primeiros acordes de “Diz que fui por aí”, de Zé Kéti e Hortêncio Rocha, uma música que virou marca registrada de Nara Leão. E também que foi responsável por toda uma nova geração de amantes de música conhecerem Nara Leão através do disco-tributo de Fernanda Takai. A música é repleta de leveza, característica marcante de Fernanda como intérprete, e a letra foi acompanhada pela plateia, toda na mão de Fernanda Takai. Ela ainda emenda esta música em outra doçura: “Com Açúcar, com Afeto”, que Chico Buarque escreveu especialmente para Nara Leão. “Uma overdose glicêmica de boa música”, como disse Sylvio Pinheiro, que acompanhava o show e postava no Twitter ao mesmo tempo.“Insensatez”, de Tom e Vinicius, que começa com um solo de flauta, e segue numa levada mais sincopada do que a original. O arranjo novo da música deu a ela uma levada mais triphop… A música é tão linda que poderia encaixar-se em qualquer gênero musical. O ousado arranjo de Rodrigo Bustamante agradou em cheio ao público e também a Fernanda. “Adoro triphop, e essa levada tem tudo a ver com a letra soturna de ‘Insensatez’”, disse ela.
Fernanda e Nico cantam juntos “Ben”, conhecida na voz de Michael Jackson quando ainda fazia parte do Jackson 5. Nico conta que essa música emocionou-o quando ele assistiu o show da turnê “Luz Negra”, de Fernanda, em Porto Alegre. Felicíssimos, os dois dançam no palco enquanto a Orquestra da Ulbra executa o arranjo de Michel Dorfman. É a última música do Concerto, mas como diz Fernanda, “todo final de show é subjetivo”, instigando a plateia a pedir por um bis que, é claro, viria em seguida. Mas, antes, os solistas, maestro e Orquestra de Câmara da Ulbra foram aplaudidos em pé em um dos Concertos Dana que já entrou para a história.Na hora do bis, voltam Fernanda e Nico, e a primeira música tocada é “Só cai quem voa”, do primeiro disco solo de Nico, acompanhada pela plateia com palmas. A letra, despojada e alegre, e o refrão deliciosamente grudento contagiaram a todos.
E então Fernanda volta ao palco, trazendo Pedro Verissimo pelas mãos. Provou que gosta de improvisos. Nico viu-a entrando e disse ao microfone, enquanto ela se aproximava com cara de menina levada em direção ao maestro: “Olha ela, lá vem ela, vai mudar tudo!”. Risos gerais. No programa, estava previsto um bis de “Luz Negra”, de Nelson Cavaquinho. Porém, Fernanda quis surpreender o amigo e a todos. Pedido feito, maestro concordou, e Fernanda, Nico e Pedro unem-se para cantar “A Vida é Confusão” juntos.
Era a primeira vez que Pedro cantava a música, e o fez no mesmo tom que Fernanda – coisa difícil para qualquer um. Nico, emocionadíssimo, estava ao piano e eventualmente cantava algo do refrão. Fernanda conseguiu o que queria: além de uma noite inesquecível para a plateia, ficará na memória dos três solistas convidados e também do maestro e da Orquestra de Câmara da Ulbra. Bravo!
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