O “dono do campinho” acaba de chegar na capela São Lucas, em Porto Alegre, para mais um ensaio dos Concertos Dana. O maestro Tiago Flores cumprimenta os poucos músicos da Orquestra de Câmara da Ulbra que já estão se acomodando e começa a resolver problemas técnicos, comprovando sua fama de perfeccionista.
Os músicos da Orquestra chegam aos poucos. O assunto do dia? Com a maioria masculina, os músicos só querem saber de comentar a vitoria do Internacional… Logo aparece o convidado do dia, o percussionista Ricardo Arenhaldt, que já tocou com os dois solistas convidados.
Enquanto Marcelo Delacroix e Geraldo Flach não chegam, a Orquestra ensaia sozinha duas músicas de Marcelo: “Passará” e “Desencanto”. As duas tem arranjo do violoncelista Rodrigo Bustamante, que transformou o samba tristonho num “tango daqueles” (segundo o arranjador). A percussão de Ricardo Arenhaldt quebra a leveza de “Passará”, dando mais força à canção, enquanto a Orquestra passeia graciosa pela melodia.
A segunda, um poema de Manuel Bandeira musicado por Marcelo, virou um verdadeiro enigma para o percussionista Ricardo, que analisa a partitura com um olhar que mistura espanto e admiração. Bustamante faz questão de dizer que o novo arranjo de “Passará” é uma homenagem ao maestro e arranjador Carlos Garofali, falecido em 2006. A introdução de cello faz toda a diferença em “Desencanto”, conferindo peso ao agora tango. Nos Concertos Dana, Bustamante ficou conhecido pela ousadia dos seus arranjos.”Nao basta ser violoncelista, tem que complicar!”, ri ele.
Com a chegada dos solistas convidados, o ensaio continua com “Inverno”, de Marcelo Delacroix e Arthur de Faria, arranjada por Iuri Corrêa. O bumbo leguero da percussão toma conta do ensaio nesta versão, mais pesada e densa do que a canção original. O título “Inverno” nunca soou tão apropriado – velho conhecedor da canção, o percussionista vibra a cada mudança de acorde e balança a cabeça positivamente, como quem quer dizer: “É isso aí, está perfeito!”.
Geraldo Flach, com toda sua calma, senta-se ao piano e começa a tocar “Choro por Julio”, com arranjo dele mesmo. Coisa rara no ensaio: a música é executada somente uma vez. Ao final, Tiago Flores, que normalmente não fala entre as músicas – especialmente em ensaios – quebra o silêncio e diz, empolgado: “Lindíssimo!”. A Geraldo, só resta sorrir.
Outra música de Geraldo, “Rancheirinha”, também arranjada por ele mesmo, que também é maestro e arranjador há muitos anos. A Orquestra entra como um vendaval na introdução da música e é sabiamente equilibrada pelo piano delicado de Geraldo. Se essa música tivesse uma imagem, seria como um daqueles filmes antigos em preto e branco – a melodia intrincada, começando com drama, suavizando com o piano e a percussão delicada e com um final grandioso, fechando num fade-out… Uma verdadeira obra de arte.
É chegada a hora de uma das surpresas da noite, uma composição de um mestre da Música Popular Brasileira que tem arranjo de Pedro Figueiredo, também conhecido como aquele que chega para complicar, não para explicar. E que complicação linda! A música é ensaiada várias e várias vezes e, apesar da melodia familiar da canção, até Geraldo estranha a parte do piano. No final, é claro, tudo se acerta. É uma delícia ouvir o maestro e os músicos falando entre si: “voltemos para o compasso 65, vamos a partir dali!”. Em ensaio, o maestro em “acordes” e os assuntos são acertados conforme os números dos compassos. Mesmo leigo, a gente entende quando a música começa a tocar.
A próxima canção é “Imagem”, arranjada por Michel Dorfman, que faz uma aparição-relâmpago no ensaio para conferir como ficou sua obra instrumental complicada que culmina com um solo de Geraldo Flach ao piano. Mesmo assim, a música é repassada mais três vezes, até que tudo seja acertado e fique de acordo com o arranjo e a leitura do maestro.
Segue o baile com “Quintana”, música carinhosamente garimpada do repertório instrumental de Geraldo Flach, já que precisava-se de uma música com letra para ser cantada por Marcelo no espetáculo. “Quintana”, uma homenagem ao poeta, é praticamente inédita – nunca foi gravada e foi só apresentada antes em show por Nei Lisboa, que a defendeu em um festival da canção das priscas eras. Marcelo reconhece a importância: canta de olhos fechados, com emoção, a voz grave preenchendo a capela com uma interpretação generosa e os gestos mesmo num ensaio… Isso é respeito e reverência. A dupla de solistas, totalmente entrosados. Será um belo momento no show.
É hora do intervalo, mas não para Tiago, Marcelo e Geraldo, que ainda discutem “Quintana” e fazem acertos no arranjo de Iuri Corrêa. A prova de que dois maestros pensam melhor que um… E Geraldo vai para casa, agora é a hora de ensaiar as músicas de Marcelo.
Voltamos com “Amigo do rei”. O maestro canta e assobia junto com Marcelo neste que é seu primeiro arranjo para a música erudita. Afinados e animados. A música fica acertada de primeira, nem precisa de segundo ensaio. Marcelo opina sobre a parte de percussão e Ricardo se defende brincando “eu toquei de um jeito meio Paralamas do Sucesso, né?”. Risos generalizados.
Em seguida, um arranjo do violoncelista da orquestra, Daniel Wolff, para “Nessa rua” – não sem antes uma pausa de Marcelo para afinar as cordas do violão depois da empolgação de “Amigo do rei”. A canção de amor perdido foi gravada em “Depois do Raio”, e Marcelo se entrega a ela, cantando como se alguém tivesse acabado de roubar seu coração no bosque dessa rua, como conta a letra. Bonito de ver.
Agora é a hora dos dois desafios, um de Pedro Figueiredo e outro de Rodrigo Bustamante: “Passará” e “Desencanto”. O maestro diz: “Vamos de ‘Passará’, que é a mais difícil!”. E é mesmo. O percussionista acha que a versão ficou mais leve do que a música original. O arranjador Pedrinho Figueiredo propôs várias mudanças de tom na música, agora muito mais longa. Ela é repassada várias e várias vezes no ensaio. No final, Tiago pergunta, com jeito de quem encarou um desafio: “Essa ficou legal, né?”
O novo arranjo de “Desencanto” faz com que o tango tocado pela orquestra contraste com a suavidade de cantar de Marcelo – que não hesita em ser mais firme na hora do refrão, cantado com mais “pegada”. O percussionista brinca: “pedi pro Bustamante tirar o violão desse arranjo, ele tá brigando com a percussão aqui!”. Marcelo dá uma gargalhada e Bustamante também. A orquestra está visivelmente exausta: a música ficou enorme e o arranjo realmente é complicado. Hora de terminar o ensaio, é preciso descansar para o grande espetáculo de domingo.