A tarde nublada de 22 de outubro não pareceu ter efeito algum sobre o maestro Tiago Flores e os solistas convidados do Concertos Dana, Fernanda Takai e Nico Nicolaiewsky. Os três entraram na sala onde a Orquestra ensaia conversando animadamente sobre os arranjos e já definindo o setlist do espetáculo de domingo, como bons amigos.
Os músicos da Orquestra se acomodavam em seus lugares – alguns repassavam as partituras dos novos arranjos das músicas, outros conversavam sobre o clássico do futebol gaúcho que acontecerá no próximo domingo. Tiago apresenta Fernanda aos músicos. Simples que só ela, já conquista a todos de cara com sua delicadeza e espontaneidade. Impossível não olhar para ela e pensar que ela parece uma garotinha. Nico Nicolaiewsky já conhecia muitos dos músicos da Orquestra, e chega todo sorridente. “Vai ser lindo”, ele diz para Fernanda. Ela responde: “Coisa boa, né? Ah, se todos os shows fossem assim…”
Enquanto os músicos se aquecem, Nico e Fernanda começam a conversar com o maestro sobre o arranjo de “Diz que fui por aí”, sucesso de Nara Leão que Tiago toca no piano.
O ensaio começa com “A vida é confusão”, de Nico Nicolaiewsky, do seu disco mais recente, “Onde está o amor?”. A letra é tão sincera, impossível não se identificar com a canção de Nico, simples e complexa ao mesmo tempo. Orquestra afinadíssima e arranjo complicado pela frente, de Daniel Wolf. Nico está ao piano e a voz delicada de Fernanda dá o tom. “Não sei se foi mentira o que eu falei/Não sei se foi maldade o que eu pensei/Não sei se foi por ti/Não sei se foi por mim”, começa a letra, que termina otimista. Nico orienta Fernanda na melodia, para acompanhá-la cantando. Ironicamente, a música parece ter sido feita para o Pato Fu, banda em que Fernanda canta. A melodia, como a letra, começa sinuosa, com um lindo solo de sopro… e vai crescendo devagarinho. “A vida é confusão/A vida vai seguir/Os homens vão sonhar/Os deuses vão sorrir”… Impossível não achar lindo.
Fernanda sugere a segunda música do ensaio, “Ben”, famosa na voz de Michael Jackson quando ele ainda era criança e fazia parte do Jackson Five. Curiosidade: a música fazia parte da trilha sonora de um musical e acabou transformando-se num verdadeiro hino sobre amizade. E é sobre um rato chamado Ben. Nico e Fernanda cantarão esta juntas e, como a música já está no repertório de “Luz Negra”, turnê de Fernanda, ela orienta Nico nas suas entradas – ela costuma cantar “Ben” com John, seu marido e parceiro no Pato Fu.
Hora de “Diz que fui por aí”, que Fernanda transformou em sinônimo de Nara Leão para uma geração nova. O arranjo de Pedro Figueiredo traz uma introdução mais longa e um solo de sopro, mas Fernanda tira de letra. A Orquestra repassa a música mais uma vez com Fernanda, para ficar mais familiarizada com o novo arranjo de Pedrinho.
Em seguida, “Com Açúcar, Com Afeto” é ensaiada – temos pressa, esse será o único encontro da orquestra com Fernanda, que faz show em outro estado sábado e volta somente para o Concertos Dana no domingo. O clássico que Chico Buarque escreveu sob encomenda para Nara Leão tem novo arranjo de Iuri Correa. A música tornou-se um grande sucesso na voz de Nara, e foi uma das primeiras que Chico compôs usando sua conhecida habilidade de escrever colocando-se no lugar da mulher amada.
Para contrastar com a leveza, vem “Luz Negra”, de Nelson Cavaquinho, que carrega o ambiente com sua melancolia. O violoncelista da orquestra, Arthur Barbosa, fica todo orgulhoso com o elogio de Fernanda ao seu arranjo: “Tá lindão, Arthur, cinematográfica”, diz ela. Nico elogia também: “Ficou um bolero lindo!”. A tristeza da letra absolutamente desesperançada deste clássico do samba ‘ressuscitado’ por Nara Leão casa bem com um arranjo dramático. Nara regravou esse clássico do samba-fossa e apresentou Nelson Cavaquinho de volta à cena musical da década de 60 – como Cartola, ele andava esquecido.
Acordes bem conhecidos enchem a sala de ensaios: “Insensatez”, de Tom Jobim. O violoncelista Rodrigo Bustamante foi quem se arriscou a mudar o arranjo de um dos maiores clássicos da Música Popular Brasileira. Fernanda canta gentilmente, como se pisasse machucando com jeitinho: “A insensatez que você fez/ Coração mais sem cuidado/ Fez chorar de dor/O seu amor/Um amor tão delicado”. Mais tarde, Fernanda comentaria que o ousado arranjo diferente do clássico lembra bastante as músicas da banda de trip-hop Portishead, conhecida pelas melodias soturnas. “Vamos mandar um email pra Beth Gibbons (vocalista da banda) e pedir para ela regravar? Já tem até aquela versão em inglês linda…”, brinca Fernanda.
Hora do intervalo do ensaio: Fernanda e Nico dão entrevista para a UlbraTV e seguem discutindo música com o maestro, enquanto a Orquestra está ausente. Os três fecham a ordem definitiva do setlist do espetáculo e, satisfeitos, começam a brincar tocando piano juntos.
Nico fica ao piano, a Orquestra se acomoda lentamente em seus lugares pós-pausa. É a hora dele brilhar: “Abertura” está maravilhosamente renovada no arranjo de Fernando Corbella. Nico empolga-se como criança ao piano e o arranjo dá uma canseira absurda na Orquestra – a mesma música é repassada quatro vezes no ensaio. O cravista Fernando Corbella fez o que talvez seja o mais belo arranjo do show… Se não é o mais belo é, com certeza, o mais complexo. A partitura parece indecifrável mas, no final, a música ficou tão linda que entende-se o clima de ventania que o arranjador deu à ela.
Depois de “Abertura”, é a vez de “Feito um picolé ao sol”, também de Nico. Ele canta sua letra com a melancolia perfeita… Um verdadeiro desabafo do compositor. O arranjo é mais uma vez de Corbella, que acerta em cheio, deixando bastante silêncio para o lindíssimo solo de piano de Nico. Uma curiosidade: Nico Nicolaiwesky aprendeu a tocar piano antes mesmo de ser alfabetizado.
Antes de gravar seu disco mais recente, Nico descobriu o prazer de cantar, depois de fazer um trabalho com a fonoaudióloga Lígia Passos. O passo seguinte ele mesmo escolheu: fazer um show só com músicas pop, chamado de “Músicas de Camelô”. No repertório, estava a próxima música do ensaio, “Anna Julia”, o maior sucesso dos Los Hermanos… Gloriosamente virada do avesso. Mais um lindo arranjo de Fernando Cordella, mas o que prevalece é a interpretação de Nico, que mostra bem toda a melancolia da letra da música conhecidíssima do público que, talvez, tenha ficado soterrada em meio a três acordes e tanto sucesso radiofônico. É como se Nico desse uma sobrevida a esta música.
Falando em tragédia, outra incrível escolha de Nico foi uma versão para o clássico do tradicionalismo gaúcho “Coração de Luto”, de Teixerinha. Para quem não conhece, a canção narra a história verdadeira da morte da mãe de Teixerinha – ela morreu num incêndio quando ele ainda era um menino. A verve teatral de Nico ajuda-o a entrar no personagem da música, que promete fazer muito marmanjo ter aperto no coração no show.
Fernanda ajusta o microfone para Nico cantar sua delicada “Flôr” (assim, com acento mesmo). Um detalhe: todas as músicas dele foram arranjados por Cordella, resultando em bastante trabalho para a Orquestra e satisfação dobrada para Nicolaiewsky, que encontra novas versões totalmente diferentes de suas originais. Exatamente como acontece com “Só cai quem voa”, uma rajada de alegria para o final do ensaio, uma valsa cômica com clima de Tangos e Tragédias, gravada no primeiro disco solo de Nico, absolutamente criativa e divertida.
Hora de terminar o ensaio, é preciso descansar para o grande espetáculo de domingo.