Faça as contas: a Orquestra de Câmara da Ulbra é composta por 15 músicos, mais o maestro. São seis os solistas convidados: Adriana Deffenti, Athos Flores, Cintia de Los Santos, Paulo Mestre, Pedro Verissimo e Tonho Crocco. As participações especiais ficam por conta do coro, composto por 12 vozes, e dos músicos convidados: oito de instrumentos de sopro, um guitarrista, um cravista, um tecladista, um percussionista e um baterista. Ao todo, são 47 pessoas ensaiando para um espetáculo apenas: o show Beatles Magical Classical Tour.
Um dia antes do show acontecer, era dia de ensaio geral. Reunir todos não é tarefa fácil, e nunca uma sala de ensaios ficou tão lotada – os solistas precisavam revezar-se na sala de espera, aguardando sua hora de participar, tamanha profusão de pessoas e dos mais variados instrumentos na sala.
Ao chegar na Ulbra, mais especificamente na Coordenação de Cultura, antes do ensaio começar, era possível ouvir uma sinfonia harmoniosa, porém curiosa: em uma sala, a soprano Cintia de Los Santos aquecia a voz. Na sala ao lado, o contratenor Paulo Mestre fazia o mesmo. Como são vozes muito agudas, elas ressonavam pelos corredores da Ulbra, chamando a atenção de quem por ali passasse.
O ensaio começou com “Girl”, com arranjo de Rodrigo Bustamante. A chorosa canção dos Beatles é interpretada por Cintia de Los Santos que, com sua voz agudíssima, confere seriedade à canção de Lennon & McCartney e tira um pouco do tom choroso da voz de Paul na canção original dos Beatles. Resultado: Cintia termina aplaudida pela orquestra.
O contratenor Paulo Mestre entra em cena para cantar “In my life”, num arranjo repleto de graves, outra ideia de Bustamante, “à la Schubert”, como instrui a partitura dos músicos e do solista. O cantor curitibano já havia cantado essa versão junto da Orquestra de Câmara da Ulbra nos shows anteriores do Beatles Magical Classical Tour, então não há mistério e a música é repassada apenas uma vez.
Em seguida, a união das duas grandes vozes de Cintia e Paulo para interpretar uma das músicas mais comoventes: “Because”, que está em Abbey Road, último disco dos Beatles. Silêncio absoluto na sala de ensaios lotada: os dois cantam com altivez e segurança, sozinhos e, em seguida, a orquestra acompanha num arranjo mais minimalista, emendada por “I’ve Just Seen a Face”, num arranjo do cravista Fernando Cordella, que fará uma participação especial no espetáculo.
Adriana Deffenti já está na espera, fazendo seus aquecimentos para voz junto com Cintia de Los Santos. Logo, o time de solistas está completo: chegam Tonho Crocco e Pedro Verissimo, acompanhados do tecladista Leonardo Boff, com um delay causado pela BR 116. Normal para um final de sexta-feira numa das estradas mais movimentadas do Rio Grande do Sul. Pedro e Leonardo chegam carregando o pesado teclado de Leonardo quatro lances de escada acima: gente que faz!
Tonho já chega mostrando a que veio, com as letras todas escritas num papel, para facilitar a decoreba. Ele começa com “Something”, de George Harrison. O sofisticado arranjo de Daniel Wolff é recheado de sopros e a voz de Tonho está cristalina. A interpretação é primorosa e, casada com as flautas, clarinete, oboé, trompetes e trombone, então… fica completa. Tonho preocupa-se em atingir um tom mais agudo no segundo verso da canção, mas o maestro tranquiliza-o: “vai pra longe do microfone e grita mesmo!” Em momentos como este, Tiago Flores mostra como a figura do maestro passa segurança para os solistas, encorajando-os. Na segunda execução de “Something”, Tonho atinge a nota que queria tranquilamente.
Hora de substituir o registro vocal: Tonho pode ficar descansado e abusar do tom grave de sua voz em “The long and winding road”, de Paul McCartney, em mais um arranjo complexo feito por Rodrigo Bustamante. A letra é enorme, mas o solista consegue um feito interessante: na gravação dos Beatles, o tom é mais dramático e, aqui, Tonho confere mais firmeza à composição.
“Across the Universe” começa como uma brisa suave, só com os violinos… E os graves ficam por conta dos solos de trompete e fagote. A voz da soprano Cintia de Los Santos contrasta perfeitamente com os solos dos instrumentos de sopro. O arranjador Iuri Correa acompanha de perto a execução: ele participa do coral e senta-se em frente à Cintia, que transforma o mantra do refrão da música em… uma experiência quase religiosa!
Antes do intervalo, é a vez de “The fool on the hill”, com Adriana Deffenti. Originalmente, é uma balada bem típica de McCartney. Rodrigo Bustamante, como sempre, não poderia deixar de inovar e virou a canção original do avesso: agora, ela tem uma pegada soul, muito mais suingada. Adriana está em casa cantando esta versão, parece que foi feita sob medida para ela.
No intervalo, todos se reencontram, já que a sala está pequena para tanta gente e as pessoas não conseguiram conversar e colocar os assuntos em dia. Tonho Crocco está emocionado: percebeu que a saxofonista Denise Fontoura foi a primeira professora de música que ele teve na vida! “Eu estava ali, sentado, olhando ela tocar flauta e sax, achando ela parecida com minha primeira professora de música… Mas fiquei na minha. Quando perguntei se ela era a Denise, não acreditei na resposta! Tive que tirar uma foto pra mostrar para a minha mãe!”, ri ele. Pedro, Adriana, Tonho e Paulo conversam sobre os mais variados assuntos, num verdadeiro encontro de amigos com a música como paixão comum. Imagine: o contratenor Paulo Mestre trabalha como dentista em Curitiba e só canta como hobby. Imagine se fosse sério!
Na volta do intervalo, a primeira música é “I’ve just seen a face”, arranjada por Fernando Cordella. Os superagudos dos solistas Paulo Mestre e Cintia de Los Santos são reforçados pelo coral, que está todo completo: são 12 vozes que recheiam os arranjos daqui para frente – sopranos, contraltos, tenores e baixos, que fazem um belo estofo para qualquer solista se esbaldar.
Antes do ensaio começar, especulava-se qual seria a música do bis. Tiago Flores disse que, nos Concertos Beatles Classical Magical Tour, quem manda é o público, nada de premeditação. Mas ele tem uma aposta, baseada em quatro espetáculos anteriores. Sua aposta vai para “Come together”. Pudera: o arranjo de Iuri Corrêa começa com o coro cantando “A Cavalgada das Valquírias” e, em seguida, entra a voz de Pedro Verissimo, gritando como John Lennon com a energia necessária para isso, com a letra forte e acompanhado sempre pelo coral. O resultado não poderia ser mais incrível. Aplausos da orquestra e dos solistas… e um Pedro esbaforido saindo da sala de ensaios. “Essa música é pura emoção, consome fôlego e muita energia”, explica ele, juntando-se aos colegas para ouvir “Help”. Cantada por Athos Flores, um dos registros Baixos do coral, num arranjo que começa melancólico e termina absolutamente grandioso, composto por ele mesmo. Ao contrário da música original, em que John Lennon disfarçou a tristeza da letra com uma melodia alegre, Athos canta cada verso ressaltando a tristeza da letra… Mas, ao final, o arranjo de Athos dá leveza com a entrada dos instrumentos de sopro e uma levada de bateria sincopada.
Pedro Verissimo volta para cantar “All You Need is Love”, e percebe-se a importância de um coro todo acompanhando nos backing vocals: 12 vozes fazem uma harmonia impressionante que dá segurança para o solista brilhar. A música é ensaiada duas vezes justamente devido à complexidade do arranjo que Daniel Wolff compôs para as vozes do coral.
Volta Adriana Deffenti para “You never give me your money”, com arranjo de Pedrinho Figueiredo e vários trechos de músicas dos Beatles mescladas. Aliás, os beatlemaníacos vão deleitar-se com as muitas referências escondidas no meio dos arranjos feitos para o show. Pedrinho é conhecido pelos arranjos inventivos, e aqui não é diferente: Adriana pode usar toda sua técnica vocal e a orquestra corre para executar todos os medleys de músicas escondidas inseridas ali pelo arranjador. Bravo!
Na penúltima música do ensaio, Tonho Crocco canta “Let it be”. A voz grave faz a balada tipicamente McCarteana soar bem diferente – pra melhor! O vocalista, seguro, é aplaudido pela orquestra e solistas ao final da versão.
Para o final, “Hey Jude”, em mais um arranjo de Rodrigo Bustamante, desta vez com a participação dos seis solistas convidados. Há espaço para tudo: a soprano Cintia, o contratenor Paulo e as vozes populares de Tonho, Adriana e Pedro. Momento de grande emoção, com direito a dancinhas improvisadas, ajuda do maestro cantando e o coro, mais uma vez, brilhando. Agora é só esperar até à noite porque, acredite, melhor do que ler sobre esse espetáculo é ouvir e ver! Até lá!