A ideia é ambiciosa: o maestro Tiago Flores pensou em fazer um concerto que homenageasse as belíssimas canções compostas pelos Beatles durante os anos 60 e 70 – mas de uma forma diferente. Para isso, ele concebeu um espetáculo conceitual, em que a escolha de cada canção que entrasse no repertório fizesse também uma conexão com a história da música, desde a renascentista, barroca, romântica, passando pela obra de grandes compositores como Vivaldi e Schubert, até chegarmos à música contemporânea. Ousado? Com certeza. Mas muito bem executado.
O time de solistas convidados era composto por Adriana Deffenti, Pedro Verissimo, Tonho Crocco, a soprano Cintia de Los Santos e o contratenor Paulo Mestre. Além da Orquestra de Câmara da Ulbra, a participação de instrumentistas fez toda a diferença – havia cravo, saxofone, flauta doce e transversa, oboé, fagote, clarinete, sax tenor, trompa, trompete, trombone, guitarra, violão, teclado, percussão e bateria. E o maestro foi mais longe ainda em sua ideia ambiciosa: chamou um coro composto por sopranos, contraltos, tenores e baixos. Ao todo, eram 47 pessoas no palco do Salão de Atos da Ufrgs lotado e ansioso para conferir o espetáculo.
O show começou com “I’ll be back”, lançada pelo Fab Four em 1964 no disco “A Hard Day’s Night”, escondida entre tantos hits. Num arranjo de Fernando Mattos, a primeira música evocou a música renascentista – a Orquestra de Câmara da Ulbra não entrou no palco, apenas o maestro, os solistas Athos Flores e Paulo Mestre, e como instrumentistas Fernando Cordella no cravo e Lúcia Carpena na flauta doce. O arranjo de Cordella ainda continha um trecho de “You’ve Got to Hide Your Love Away” escondido – os beatlemaníacos entenderam a referência na hora, aplaudindo. Mas, no restante da execução, chamou a atenção o fato de que, mesmo lotado, o Salão de Atos estava silencioso, prestando atenção nesta pérola escondida dos Beatles e, ao mesmo tempo, na explicação de Tiago Flores sobre a viagem musical que transformou a noite em uma experiência única.
A soprano Cintia de Los Santos entrou no palco para acompanhar o contratenor Paulo Mestre num arranjo que uniu “Because” e “I’ve Just seen a Face”, executada apenas pelos dois e pelo cravista Fernando Cordella, que fez o arranjo que uniu as duas canções. A ideia era evocar a música barroca e o cravo é um instrumento que evoca esse estilo musical. A delicadeza de “Because” combinou com o arranjo sutil, quase minimalista, e “I’ve Just seen a Face” ficou leve como as vozes dos dois solistas. Nessas horas é que dá pra conferir o recheio que um coro repleto de sopranos, contraltos, tenores e baixos pode dar a uma música. O maestro Tiago Flores, mais uma vez, explicou a referência ao estilo musical barroco em que há espaço para as cordas dos violinos e cellos da orquestra.
Tiago Flores anuncia “Girl”, que seria executada “à la Mozart”, um compositor mais conhecido do grande público, num arranjo de Rodrigo Bustamante. O arranjador valorizou o vocal primoroso de Cintia e os instrumentos de sopro – a música original dos Beatles é bastante melancólica, e Bustamante ressaltou essa tristeza melódica em seu arranjo, já que a obra de Mozart é conhecida também por estes adjetivos.
Em seguida, o contratenor Paulo Mestre volta ao palco para cantar “In my life” com Cintia, em mais um arranjo de Rodrigo Bustamante, desta vez homenageando o compositor Schubert. Os solistas de formação lírica são precisos em suas interpretações e a presença do cravo faz toda a diferença. O próprio maestro aplaudiu a orquestra e os solista aos final de “In My Life”.
O solista Tonho Crocco entra em cena, aplaudidíssimo, para cantar um arranjo que emula o período romântico da música… E justamente em uma das músicas mais românticas dos Beatles, “Something”, de George Harrison. No arranjo de Daniel Wolff, o destaque é para as cordas e sopros, mas é a voz firme e grave de Tonho que dá o tom na declaração de amor que George compôs para sua então esposa Pattie Boyd. Seguro, Tonho atinge notas mais altas no refrão e emociona muita gente. Ao final da música, Tiago Flores explica que “se permitiu” incluir bateria na música mesmo que isso não combine com o estilo romântico do restante do arranjo. “A gente tem que fazer concessões, afinal, estamos interpretando músicas contemporâneas”, esclarece ele.
Outro arranjo romântico está na música seguinte do programa: “Across the Universe”. A canção vira mesmo mantra na voz da soprano Cintia de Los Santos. O arranjo de Iuri Corrêa é tão delicado que transformou a música em uma canção de ninar, calmante e hipnótica como a fase em que os Beatles mergulharam na cultura indiana. Fase, aliás, que presenteou o mundo com algumas das melhores músicas deles, entre as quais “Across the Universe”.
A próxima canção é “Come Together”, com um arranjo de Iuri Corrêa. Durante os ensaios, o maestro avisou que o bis do show seria imprevisível – nos outros quatro espetáculos do Beatles Classical Magical Tour, ele deixa o público escolher a música que vai ser repetida no final. “Não se brinca com fãs de Beatles, eles são muito apaixonados!”. Mas no ensaio ele disse: “A probabilidade do bis ser ‘Come Together’ é grande: as plateias adoram esse arranjo”. Não deu outra: esta primeira versão foi tão bem cantada pelo solista Pedro Verissimo, acompanhado pelo coro num medley que incluiu “Carmina Burana”, que deixou muita gente de queixo caído. A original de Lennon & McCartney já era forte e energética, a inserção de Carmina Burana e de um baita coral ao fundo transformou a música numa trovoada. Pedro canta com olhos fechados e energia, enquanto o coral canta o refrão duas oitavas acima do solista. De arrepiar! Aplausos de pé – e mais do que merecidos.
Hora de um medley instrumental que une as músicas “Penny Lane”, “Magical Mystery Tour” e “Hello Goodbye”, num ousado arranjo do violoncelista Arthur Barbosa. Quem sabia as letras, cantarolava-as baixinho para acompanhar o arranjo instrumental.
Depois do medley, volta ao palco o arranjador e solista Athos Flores para cantar “Help”, que ele mesmo interpretará numa versão sem os floreios que John Lennon usou pra disfarçar a tristeza na música original. Antes do show, Athos contava que foi um dos arranjos mais difíceis de fazer porque essa é sua música favorita dos Beatles. De início, o arranjo de Athos é mais leve, com bastante espaço para os violinos, que contrastam com sua voz grave, quase de barítono, mas depois ganha uma leveza impressionante.
O maestro chama ao palco novamente o solista Pedro Verissimo que, depois de “Come Together”, está com o público na mão. Ele cantará “All you need is Love”, arranjada por Daniel Wolff. Como na versão original dos Beatles, o destaque é para os instrumentos de sopro e as vozes do coro. A felicidade estampada no rosto de Pedro é comovente: ele canta de olhos fechados, abre os braços, dança… mais parece uma criança feliz, contagiando o público com o hino de amor e paz de Lennon & McCartney.
A diva dos Concertos Dana, Adriana Deffenti, sobe ao palco para cantar “The fool on the hill”. Num arranjo bastante inventivo, Rodrigo Bustamante que pegou muita gente desprevenida ao mudar a original. Aqui, a levada é mais soul, ao contrário da tristíssima original dos Beatles, cantada por Paul McCartney. Adriana está confortável com a versão, nota-se que ela pode soltar a voz como gosta e interpretar a canção com uma levada mais forte, de música negra americana. Um deleite para os olhos e ouvidos. Em seguida, “You never give me your money” é cantada por Adriana também, num arranjo de Pedrinho Figueiredo, que transformou a música numa toada. Esses arranjadores e suas ideias geniais…
A música mais famosa dos Beatles, “Let it be”, é cantada por Tonho Crocco, que faz a vez de crooner, abrindo os braços e tomando conta do palco. O arranjo de Rodrigo Bustamante faz os violinos parecerem uma brisa suave e contrastam com a voz de Tonho. E todo o público cantando junto torna o momento mais especial ainda.
Falando em momento especial, a última canção do espetáculo tinha jeito de grande momento: “Hey Jude” – oficialmente, a última canção do Concertos Dana. Todos os solistas voltam ao palco para um encerramento com time completo, palco cheio, ouvidos e corações também. A escolha de “Hey Jude” reúne os estilos da viagem pela história da música e também todos os solistas com a plateia, que logo bate palmas e canta em uníssino o refrão.
Com certeza, foi a maior quantidade de músicos e intérpretes por metro quadrado de palco já registrada num Concertos Dana. A plateia que lota o Salão de Atos da Ufrgs acompanha com palmas a alegria dos solistas, que deixam o palco aplaudidos em pé – alguns, inclusive, não fazem questão de esconder a emoção e choram aquelas lágrimas boas, de redenção e emoção.
O público pede por um bis e, como o maestro havia dito, a escolha é deles mesmos. Como Tiago esperava, a plateia pediu pela dobradinha inusitada que uniu “Come Together” e “Carmina Burana”. Empolgadíssimo, Pedro Verissimo consegue levantar o público mais uma vez. Mas é hora do final: Adriana, Cintia, Paulo, Pedro e Tonho voltam ao palco apenas para o aplauso final. Agora, é aguardar a resposta do Governo do RS e da Lei de Incentivo à Cultura para mais uma temporada inesquecível de Concertos Dana em 2011. Até lá!
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