Lá nos pampas do Rio Grande do Sul, povoados pelos valentes gaúchos e briosos cavalos que utilizavam para tocar o gado, vivia um estancieiro muito orgulhoso de suas posses, e conhecido em toda a região por sua avareza. Doentio em sua gana pelo ouro, era incapaz de receber uma visita, de permitir que os sedentos viajantes tomassem das águas de suas terras, de tratar com dignidade aqueles que para si trabalhavam.
Esse avaro só tinha olhos para três coisas: seu filho, trilhando o caminho do pai nas artes da maldade e avareza; um majestoso cavalo baio, de porte imponente; e um pequeno escravo, ainda menino preto como carvão que nem nome tinha. Era conhecido como Negrinho. Negrinho não tinha padrinho. Dizia-se afilhado da Virgem Nossa Senhora, madrinha de quem não tem madrinha.
Certo dia, o avarento foi desafiado por um vizinho a provar, em uma corrida, que seu garboso baio era realmente veloz. O desafio assanhou o povo. Muitos viam ali a oportunidade de saborear o fracasso do avarento, e acorreram ao local da disputa no dia combinado. Quem havia de montar o baio, por ordem expressa do estancieiro, era o Negrinho. E parece que a torcida contra o avarento foi mais forte.
No finalzinho da corrida, faltando poucos metros, o baio vacilou e o estancieiro viu, num misto de raiva e surpresa, o desafio perdido. E paguem-se as apostas. E suportem-se os olhares risonhos, os sussurros irônicos, os sorrisos sarcásticos. Aquilo era demais para o orgulho do avaro. E o castigo caiu sobre o Negrinho.
Amarrado a um poste e surrado com um relho, o Negrinho ouviu chorando sua condenação. Haveria de passar 30 dias sozinho, pastoreando 30 cavalos. Afinal de contas, 30 quadras media a pista em que perdera a corrida.
Noite, frio, sol e chuva, e o Negrinho ali. Cansado, ferido pelas lambidas do relho, com fome e desamparado, o Negrinho, recostou-se em um cupinzeiro e dormiu. Dormiu amparado pelos pensamentos em sua madrinha, a Virgem Nossa Senhora, que haveria de protegê-lo. Acordou de madrugada, sobressaltado, com o ruído do tropel dos cavalos que os ladrões estavam levando embora. O Negrinho perdera o pastoreio. E desandou a chorar.
Piorando a desdita, surgiu o filho do estancieiro e correu contar para o pai que não havia mais os 30 cavalos. Novo castigo, outra vez no poste, outra vez sob o relho. E a ordem severa e impiedosa de procurar o que perdera.
Recorrendo a sua madrinha santa, o Negrinho muniu-se de uma vela do oratório da casa e partiu em busca dos cavalos roubados. Enquanto andava, a cera da vela derretida pingava pelo chão, fazendo brotar de cada pingo um facho de luz que transformava sua trilha em uma mágica sucessão de brilhos, quebrando o profundo breu que cobria os campos. E tanto andou, tanto procurou, que acabou por encontrar. Montado no baio, levou a tropa de volta para casa.
Mas a casa era longe. Embalado pela felicidade e atormentado pela dor, fome e cansaço, o Negrinho recostou-se em um cupinzeiro e dormiu. Pois foi então que surgiu o filho do estancieiro e, malvado, espantou a tropilha. Disparada! Cada um para seu lado! E o pobre Negrinho, sonolento, mal-acordado, nada pode fazer.
Novo castigo. Novamente ao poste, novamente ao relho. Mas a ordem, dessa vez, era bater até que ele não chorasse mais. E tanta surra foi, que o Negrinho desmaiou. E em carne viva, com a pele dilacerada pelo chicote, permaneceu imóvel, amarrado ao poste, como se estivesse morto. Não satisfeito, o estancieiro ordenou que o pobre fosse atirado sobre um formigueiro para que as formigas devorassem suas carnes até os ossos. E cumpriu-se o ordenado.
Três dias e três noites se passaram. Então o estancieiro foi até o formigueiro apreciar o resultado de sua crueldade. Qual não foi sua surpresa ao deparar, onde esperava encontrar uma ossada alva, com o Negrinho. De pé sobre o formigueiro, tirando de sobre o corpo as formigas, sem nenhuma marca de chicote, o Negrinho estava acompanhado.
De um lado, o cavalo baio e a tropilha perdida. De outro, a Virgem Nossa Senhora zelando por seu afilhado. Apavorado, o estancieiro caiu de joelhos diante do Negrinho. E o menino escravo montou no baio e disparou pelos pampas, pastoreando a tropilha.
Desde então, multiplicam-se os testemunhos dos peões e viajantes que encontraram o Negrinho tocando sua tropilha. Todos os anos, durante três dias, o Negrinho recolhe-se em algum formigueiro, em visita às formigas suas amigas. E os cavalos de sua tropilha esparramam-se pelas manadas das estâncias, para serem reunidos ao nascer do sol do terceiro dia. É nessa hora que acontecem as disparadas das manadas.
Dizem que quem perder alguma coisa deve acender uma vela à Virgem Nossa Senhora. O Negrinho encontra o objeto perdido e coloca-o de jeito a ser encontrado. E se ele não encontrar, ninguém mais encontrará.
Origem da lenda
Originária das regiões pastoris do Rio Grande do Sul, fronteira do Brasil com o Uruguai, esta lenda apresenta fortes elementos religiosos, católicos por excelência ao demonstrar a redenção da personagem por sua devoção à Santa Madrinha.
Nascida durante a época da escravidão, a lenda original é relatada carregada do típico palavreado popular do Rio Grande do Sul. Ela permite observar, por sua origem relativamente recente, o processo de incorporação por outras culturas e a ultrapassagem das fronteiras regionais. Inicialmente limitada ao Rio Grande do Sul, onde nasceu, a lenda do Negrinho do Pastoreio já se espalhou pelo Paraná, São Paulo e Mato Grosso, regiões para as quais emigraram famílias gaúchas em grande quantidade nos últimos 50 anos.
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DobraDana
A lenda do Negrinho do Pastoreio faz parte da nossa tradição e merece continuar sendo contada. Imprima e monte o PDF do DobraDana e leve com você esta comovente história.
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