Noite de quinta para sexta-feira. O viajante assustado se apressa para chegar a seu destino. Atento, espreita a escuridão esperando por qualquer ruído ou visão. Ele sabe que é noite da Mula-Sem-Cabeça, também conhecida por Burrinha ou Burrinha-do-Padre.
De repente, seus receios se confirmam. É o distante ruído de um tropel que o apavora. Aproximando-se cada vez mais, ele escuta o barulho dos cascos em desabalada carreira, levantando a poeira da estrada. Algumas vezes ouve um gemido quase humano. Outras, um relinchar pavoroso.
E surge na curva da estrada a razão de seus temores. Tem a forma de uma mula, mas não tem cabeça. Mas mesmo sem ela, solta fogo pelas ventas. O bicho vem a toda. Ataca o que estiver pela frente, homem ou animal. Atrás vem a cachorrada das redondezas, latindo furiosamente. Pobre de quem se encontrar em seu caminho. A Mula ataca impiedosamente, desferindo coices poderosos, que cortam como navalhas, dilacerando suas vítimas.
Diz a lenda que as Mulas-Sem-Cabeça são mulheres que mantêm casos amorosos com padres católicos nas cidades do interior do Brasil. Seu castigo é virar Burrinha nas noites de quinta para sexta-feira e correr sete cidades, atacando tudo que estiver pela frente.
Ao fim da corrida, já madrugada, exausta e cheia das marcas provocadas pelas batidas e arranhões, a mulher readquire sua forma humana. Para recomeçar a sina na próxima noite de quinta.
Dizem que só o padre pode evitar que sua concubina cumpra a sina. Para tanto, deve amaldiçoá-Ia antes de celebrar a Santa Missa. O encanto só pode ser quebrado por quem causar na Mula um ferimento que derrame sangue. Mas é necessário enfrentá-la em luta. Nesse momento o encanto se quebra e a mulher reaparece em sua condição humana, inteiramente nua.
Na lenda da Mula-Sem-Cabeça, alguns detalhes variam: pode ser um animal negro, com uma cruz de cabelos brancos; pode soltar fogo pela cauda e pode carregar um freio ferozmente mastigado na boca espumante de sangue. Em todos os casos, porém, é castigo de mulher de padre.
Origem da lenda
Muito parecida com a lenda do Lobisomem, principalmente no processo de encantamento que invariavelmente ocorre nas noites de quinta para sexta-feira, e no detalhe do desencantamento ocorrer pelo simples verter de sangue por um ferimento, a lenda da Mula-Sem-Cabeça descreve o castigo da mulher que se envolve com um padre.
Curiosamente, existem registros do Cavalo-Sem-Cabeça, que dizem ser o castigo dos padres que se metem com as mulheres alheias.
Gustavo Barroso, em “O Sertão e o Mundo”, lembra que nos documentos do século XII as mulas eram classificadas como transporte privativo dos padres de então, o que talvez explique a origem da lenda pela familiaridade da visão do padre sempre acompanhado da mula.
Como outras lendas, esta também apresenta enorme variação de descrições conforme a região. Mula-Sem-Cabeça soltando fogo pelas ventas, conduzindo na cauda um facho de fogo ou com uma larga faixa branca no pescoço, a lenda aproxima-se novamente da do Lobisomem ao ligar-se com o fatídico numero sete. Sua sina é correr sete cidades.
Chamada também de Burrinha ou Burrinha-de-Padre, é notável a característica moral, do castigo pelo mal feito. Nesse pormenor, novamente aproxima-se da versão da lenda do Lobisomem, que apresenta a fera como resultado do castigo por uma ligação incestuosa.
Praticamente todas as regiões brasileiras já apresentaram algum registro sobre a Mula-Sem-Cabeça.
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