Quem poderia imaginar que o primeiro Fórmula 1 brasileiro deve muito ao mau tempo? Sim, pois, se naquele terceiro domingo de janeiro de 1969 tivesse feito um céu de brigadeiro, teria sido muito difícil construir o Fitti-1 no Brasil.
Nem o então major Ozires Silva poderia imaginar que, quando o operador da torre de controle da pista do Centro Tecnológico Aeroespacial, o CTA, de São José dos Campos, São Paulo, telefonou-lhe informando que o avião do presidente da República, general Artur da Costa e Silva, estava pedindo prioridade para um pouso na pista do CTA, muita coisa iria mudar na sua vida e na do país. Eram sete da manhã e, como o aeroporto da cidade de Guaratinguetá, destino do presidente, estava fechado pelo nevoeiro, o Viscont presidencial pousaria na pista do CTA.
O major Ozires, como maior patente de plantão deveria recepcionar o presidente, pois as autoridades estavam aguardando a comitiva presidencial em Guaratinguetá, a 86 quilômetros dali. O major Ozires, engenheiro aeronáutico, viu no mau tempo a chance única de falar ao presidente sobre os planos do CTA. Ordenou ao operador da torre que instruísse o comandante do avião presidencial para taxiar até o hangar onde estava o protótipo do Bandeirante, projetado no CTA, e que havia feito o primeiro vôo em outubro de 1968.
Na hora e meia que o presidente permaneceu no hangar, Ozires Silva aproveitou para contar em minúcias as pesquisas e os planos de construção do Bandeirante e da criação de uma estatal para a fabricação de aviões no CTA. Uma iniciativa que tinha o veto do ministro da Aeronáutica, defensor de uma inviável, na época, empresa de economia mista.
“Imagine”, recorda Ozires Silva, “eu, um major da FAB que não tinha acesso ao presidente, dispor daquela oportunidade. Na hora em que o nevoeiro persistiu eu fiz uma verdadeira lavagem cerebral no presidente. Coloquei-o a par de todo o projeto. Quando ele se despediu, bateu no meu ombro e me garantiu: ‘Eu vou ajudá-lo’.”
Dois meses depois daquela oportuna manhã sem teto, Ozires Silva foi chamado a Brasília para uma reunião com o ministro da Fazenda, Delfim Neto, e com os ministros do Planejamento, Indústria e Comércio e Aeronáutica, quando fez a explanação sobre a criação da Embraer. Defendia a estatal pela dificuldade de captação de recursos para uma empresa de economia privada, como tinha informado ao presidente da República.
Como havia a manifesta disposição da presidência de aprovar a estatal, a lei que criou a Embraer foi assinada em agosto de 1969. No início de 1974, quando o Bandeirante já era fabricado em série e a produção estava sendo exportada, Wilson Fittipaldi Júnior visitou a Embraer com o projeto de um Fórmula 1 brasileiro embaixo do braço. “Fiquei surpreso”, admite o hoje tenente-coronel aviador da reserva da FAB, contando como nasceu a parceria da Embraer com a Fittipaldi Empreendimentos: “Nós fabricávamos aviões, não automóveis, mas aquele pioneirismo do Wilson Fittipaldi me sensibilizou, e nos prontificamos a auxiliá-lo naquele sonho que tinha alguma semelhança com a criação da Embraer.”
De certa forma, segundo Ozires Silva, a construção do Bandeirante foi para a aviação regional como uma reinvenção do avião: um aparelho ágil para 15 passageiros. “Portanto, nada mais aceitável que colaborássemos na fabricação de algumas peças e, principalmente, na parte aerodinâmica do Fitti-1, embora a aerodinâmica dos aviões seja substancialmente diferente da dos carros de corrida.” No avião, explica o engenheiro, a força de sustentação é decomposta em duas componentes em relação à linha de vôo. “Porque o avião tem que voar sempre com o ângulo de ataque positivo, para ter a sustentação no ar, e no Fórmula 1 o ângulo de ataque é negativo. Simplificando, o avião precisa flutuar, e o protótipo de corrida, aderir ao solo. A semelhança entre o avião e o carro de F-1 está no arrasto – na barreira contra o vento –, que em ambos é para trás, o que, resumindo, custa potência. Então a nossa colaboração com o Fittipaldi F-1 era produzir um empuxo que colasse o carro junto à superfície, naturalmente no caso dos aerofólios, tanto traseiro como dianteiro, mas que provocasse o menor arrasto possível.”
“Também havia o compromisso de criar um coeficiente de penetração extremamente elevado, para o Fórmula 1 ser veloz. É um trabalho difícil por causa do efeito solo, fenômeno que não ocorre na aerodinâmica do avião. Este tem, na parte inferior, um fluxo de ar absolutamente livre. Portanto nós tínhamos que, além de criar o esforço para baixo – pressão aerodinâmica –, valorizar a penetração aerodinâmica do Fitti-1”, esclarece Ozires Silva.
A Embraer recebia os projetos dos aerofólios desenhados pelo projetista Ricardo Divila, confeccionava os modelos e depois testava no túnel de vento aerodinâmico do Centro Técnico Aeroespacial. Uma galeria de ótimas características para a análise das asas do Fórmula 1, feita na dimensão normal da peça e fornecendo dados precisos sobre sua funcionalidade. Enfim, os componentes do Fitti seguiam os mesmos critérios dos componentes do avião, aprovados nos ensaios aeronáuticos.
“Também foram desenvolvidos os parâmetros da força de sustentação em relação ao arrasto aerodinâmico, à tração do motor, ao arranque e às variações em curvas. Nestas, o F-1 tem uma componente de ar que não ocorre no avião, porque a força lateral é desprezível nos aeroplanos”, complementa Ozires.
Essa colaboração foi tão definitiva para a concretização do projeto do Fitti-1 que Wilson Fittipaldi garante que sem a Embraer não seria possível tornar realidade a construção do carro no Brasil. O engenheiro acha a afirmação de Wilsinho Fittipaldi generosa, mas admite que ele encontrou muito entusiasmo nos técnicos da Embraer. “Eu costumo dizer que cada projeto tem cinco dimensões: comprimento, largura, altura, preço e prazo. Portanto, a solução perfeita fica muito cara, então nem se almeja a perfeição, e sim a solução possível”, afirma.
A filosofia do engenheiro aeronáutico explica-se pela inexistência de indústria de autopeças para um F-1, como também era nula para “aeropeças”, na época. Portanto, a Embraer era, para os Fittipaldi, a possibilidade de viabilizar o seu projeto, usufruindo a experiência adquirida pela empresa no desenvolvimento do Bandeirante.
A Embraer era dominada pelo espírito de pioneirismo de seus técnicos, motivados pelos projetos dos aviões. Assim que eles sentiram a possibilidade de colaborar com um Fórmula 1, entusiasmaram-se de tal forma que, segundo Ozires, foi como juntar a fome com a vontade de comer. “Oferecemos a colaboração de setores especializados nos sistemas da hidráulica, pneumática, elétrica e de combustível para o FD-01, que, do ponto de vista da concepção tecnológica, estava à frente do seu tempo. Foi uma experiência muito interessante – e imagine a nossa emoção quando assistimos à estréia do Fitti-1”.
Ozires Silva, paulista de Jaú, nasceu em 13 de dezembro de 1930, mas acabou sendo registrado em 8/1/1931. Fanático por aeromodelismo até hoje, deixou a Embraer para presidir a Petrobrás. Foi ministro da Infraestrutura e, em julho de 1991, voltou a presidir a Embraer, promovendo a privatização da empresa para dotá-la da agilidade necessária para competir no comércio internacional. Uma meta que ele viu atingida quando já presidia a Varig, com o sucesso do modelo 145, um jato para 50 passageiros que a Embraer já construiu e colocou no mercado mundial, superando a soma de todos os aviões comerciais fabricados pela Inglaterra até 2004.
E pensar que tudo aconteceu por causa do mau tempo no terceiro domingo de janeiro de 1969.