Wilsinho achava que iria facilmente até o fim da corrida de estréia no GP da Argentina naquele 12 de janeiro de 1975. Tudo foi preparado. O carro tinha sido conferido e reconferido, tudo foi revisado, o combustível foi calculado com sobra e a tática era para uma corrida de chegada. Claro que havia esperança até de pontuar, chegar entre os seis primeiros, mas já seria muito bom estar entre os 10, ainda que terminar a corrida fosse a meta mais razoável. Afinal, o FD-01 já tinha rodado 230 horas em 90 dias de experiências nos testes de Interlagos.
Nos treinos livres do Grande Prêmio, Wilsinho tinha decorado o circuito, sentido a reação do carro em todas as curvas e acelerado no limite nas retas. Enfim, ele usou todo tempo disponível dos treinos livres e da classificação para rodar o máximo, e o carro tinha respondido bem. Nos treinos de sexta-feira, sequer marcou o tempo necessário para largar, mas tinha feito bastante quilometragem, que era uma das prioridades para testar a confiabilidade do material. No sábado, após troca de motor e outros acertos, ele conseguiu colocar o carro no grid de largada.
O Tigrão sabia que era o início de uma caminhada de muitos testes, experiências, mas não havia nada no protótipo Fittipaldi que indicasse qualquer problema insolúvel. Nenhuma novidade que ele já não tivesse enfrentado na Brabham, equipe pela qual tinha competido na F-1, nas duas temporadas anteriores. Agora era ir para a largada, a fim de testar criador e criatura em ação, no calor da emoção e na frieza da técnica.
O Fitti-1 alinhou num grid de máquinas fantásticas, coadjuvando McLaren, Lotus, Ferrari, Tyrrell, Brabham, BRM, pilotados por botas famosos como Emerson Fittipaldi, Niki Lauda, Clay Regazzoni, Jody Scheckter, Ronnie Peterson e Jacky Ickx, entre outras feras.
Junto com o Copersucar-Fittipaldi FD-01, estreavam naquele GP da Argentina outras duas equipes: a Penske e a Parnelli Jones. Escuderias milionárias e com, no mínimo, o triplo do aporte financeiro do time brasileiro, ambas vindas do automobilismo norte-americano. O Penske, pilotado por Mark Donohue, e o Parnelli, por Mario Andretti, eram cópias despudoradas do McLaren e da Lotus. Wilsinho saiu do boxe 27 e rumou para tomar o lugar na largada. Mesmo ciente de que ia enfrentar as mais poderosas forças da F-1, estava feliz e orgulhoso, alinhando o Copersucar-Fittipaldi nº 30 no final do grid de 23 carros.
Lá na frente, na primeira fila, o Tigrão sabia que estava Jean-Pierre Jarier com o voador Shadow-Ford, um carro fantástico, meio segundo mais rápido que os Brabham do brasileiro José Carlos Pace, o Moco, e de Carlos Reutemann. Na terceira fila, lado a lado, duas feras que brigariam até a última corrida pelo título mundial de 1975: seu irmão Emerson, com o McLaren M23, e Niki Lauda, a bordo da Ferrari 312 B3. O sul-africano Jody Scheckter e o francês Patrick Depailler tocavam os velozes Tyrrell, num grid completado por estrelas do brilho de Clay Regazzoni (Ferrari) , Ronnie Peterson e Jacky Ickx (Lotus), Mario Andretti (Parnelli), Jacques Laffite (Williams) e o saudoso Graham Hill, em final de carreira com seu Lola-Ford.
“Uufa!!”, suspirou o Tigrão. Ele sabia que não tinha moleza pela frente, mas que o importante era estar naquele circo, classificado para dar a primeira partida com o carro que ele construíra. Essa lembrança fez brotarem as lágrimas que embaçaram a viseira do capacete. A partida foi normal. Wilsinho, que tinha como plano não correr risco na largada, até se surpreendeu quando chegou à frente da BRM de Mike Wilds no final da reta, ultrapassou-o e partiu para a disputa com os Lola de Rolf Stommelen e de Graham Hill.
Quando ele recebeu a placa de boxe, sinalizando que estava em 18º naquela 11ª volta, sentiu-se na corrida. Até ali tocava maneiro: já tinha completado um quarto da prova e o carro melhorava à medida que o tanque de combustível baixava. Era cedo para sonhar, mas nem precisava melhorar nada para chegar ao fim das 53 voltas do Grande Prêmio. Ainda estava feliz quando sentiu uma violenta chicotada na traseira do carro.
A “unibol”, uma junta esférica que pegava no tensor traseiro da roda direita, quebrou e as rodas se abriram. O carro perdeu o controle, atravessou a pista e foi se chocar contra o guardrail no lado oposto. O choque provocou um princípio de incêndio e fez terminar, naquela 12ª volta do GP da Argentina, a estréia do Fitti-1. Tudo por causa da quebra da junta unibol, uma pecinha importada da Inglaterra.
Emerson Fittipaldi, que àquela altura da corrida era o terceiro colocado, atrás de Carlos Reutemann (Brabham) e James Hunt (Hesketh), depois de receber a informação de que estava tudo bem com Wilsinho, disparou à caça dos líderes, ultrapassou-os e venceu a corrida com a gana de quem queria homenagear o esforço do irmão.
O recorde dos mecânicos
O acidente no autódromo de Buenos Aires inspirou piadas e críticas ao protótipo brasileiro. Do carinhoso nome “Fitti-1”, a irreverência nacional passou ao pejorativo “açucareiro”. Wilsinho teve de enfrentar baterias de explicações pela ousadia de construir o primeiro Fórmula 1 brasileiro fazendo um retrospecto do projeto. “Nós trabalhamos com seriedade, mas ainda estamos pagando pela inexperiência”, admitia Fittipaldi. “Conhecemos nossa capacidade, mas admito que fizemos algumas improvisações. O Jo Ramirez (ex-mecânico de Jackie Stewart) nunca foi chefe de equipe, e este é o primeiro projeto de Divila na F-1. Entre os mecânicos, só o Yoshiatsu Itoh (ex-Lotus) tinha experiência. Mesmo assim não houve erro grave da equipe, nem nos testes nem na estréia. O acidente foi conseqüência da quebra de uma peça igual às usadas pela quase totalidade dos F-1 e a qual importamos da Inglaterra. Reconheço, também, que a imprensa não fez críticas pesadas a nosso trabalho. As gozações, os apelidos ficam por conta do humor da nossa gente”, analisava Wilsinho.
“Estudamos e trabalhamos durante 356 dias até colocar o carro funcionando. Depois vieram os testes exaustivos. Tivemos muitos acertos, alguns fracassos e muitas modificações, até levar o carro para a estréia no Grande Prêmio da Argentina. Conseguimos nos classificar para a largada, mas aí veio o drama da quebra e do incêndio”.
As alterações feitas para pôr o carro novamente na disputa foram resumidas assim por Wilsinho: “Como seria impossível refazer o mesmo modelo carenado em duas semanas para o GP do Brasil, optamos por colocar na pista a segunda versão do FD-01. O FD-02, só para manter a cronologia, com os radiadores de água – antes abrigados na traseira – transferidos para as laterais. O carro ganhou uma configuração diferente na aerodinâmica, mas com a mesma geometria de suspensão e a mesma distância entre os eixos, e mais próximo da filosofia dos F-1 daquela temporada. O que não poderia acontecer era ficarmos de fora do GP do Brasil”.
Houve expectativa, piadas e descrédito na presença do Fitti-1 em Interlagos, mas tudo foi superado por 20 pessoas em duas semanas de trabalho intenso, esquecendo o sono, a fome e o cansaço, até colocar o segundo carro novamente na pista para os treinos oficiais do Grande Prêmio do Brasil. O FD-02 era um carro muito diferente do primeiro modelo revolucionário projetado por Ricardo Divila. A nova unidade do Fitti-1 abandonou a maioria dos conceitos aerodinâmicos para aproveitar a experiência já aprovada de outras equipes.
Wilsinho Fittipaldi chegou até a fazer um mea culpa pela coragem de ousar, o que, convenhamos, era uma temeridade na Fórmula 1 dos anos 70. “Nós começamos errado”, penitenciou-se Wilsinho. “Fizemos um carro revolucionário na aerodinâmica e principalmente no sistema de refrigeração, com os radiadores na traseira do carro, e tivemos de retroceder ao convencional. Devíamos ter começado por aí, para depois ir sofisticando. De qualquer forma, não abandonamos o projeto original; a falta de tempo é que nos fez alterar o carro para a corrida de Interlagos. Agora teremos que ter mais tempo, mas voltaremos com as experiências de radiadores traseiros e motor coberto pela carenagem”.
Se a destruição parcial do carro em Buenos Aires foi uma fisgada no orgulho do time – o veterano mecânico Darci Medeiros não conseguiu evitar o choro compungido –, também deu força e mexeu com o moral da equipe Copersucar-Fittipaldi. Saíram das cinzas de Buenos Aires para, num tempo recorde, colocarem na pista o segundo carro, que ainda estava sobre cavaletes, em preparo, na fábrica. E não foram poucas as mudanças.
Houve modificações na suspensão dianteira, com molas mais duras –carga de 280 libras, quando até então usavam molas com carga de no máximo 250 libras. Mudaram também os perfis dos aerofólios traseiro e dianteiro e a posição de pilotagem: Wilsinho ficou menos inclinado dentro do cockpit, com a cabeça 8 centímetros mais alta, para ter melhor visão dos pontos de tangência nas curvas. A tomada de ar sobre o motor foi aumentada na abertura e mais destacada da linha aerodinâmica. Essas alterações obrigaram Ricardo Divila a projetar uma redistribuição de peso no Fitti-1 que resultou em lucro, porque o carro foi aliviado em 12 quilos.
Para realizar essas proezas, Yashiatsu Itoh e seus mecânicos emendaram dia e noite e Jo Ramirez e Divila praticamente se mudaram para a fábrica. Torno, fresa, dobradeira e serras não pararam de trabalhar, compondo uma sinfonia barulhenta e apressada na oficina que só cessou quando o novo Fitti-1 foi para o grid. Um esforço compensado com a dupla alegria de ver o novo carro completar 23 voltas sem apresentar nenhum problema e Wilsinho cravar a marca de 2’36″9, ou seja: o segundo tempo no primeiro treino do Grande Prêmio.
Na corrida também houve um progresso acentuado, principalmente por terem saído de uma estréia desastrada para uma segunda prova em Interlagos, com um carro modificado em duas semanas. Uma vitória, pois, além de terminar a corrida sem qualquer problema mecânico, só não superou o 13º lugar porque o motor perdeu potência (compressão) a dez voltas de completar as 40 da corrida.