Em novembro de 1990, Wilsinho Fittipaldi recebeu um telefonema de Darci Medeiros, o mecânico que trabalhara com ele durante anos. Não entendeu a insistência do antigo companheiro para que ele fosse até sua oficina. Mas, como se tratava de um velho colaborador, Wilson foi até lá e se surpreendeu ao ver o Fitti FD-01 estacionado no meio da garagem. Olhou para o amigo, depois para o carro, fechou os olhos e, depois de uma breve viagem ao passado, fez a pergunta que Darci já esperava: “Como é que esse carro veio parar aqui?”
O mecânico, que já contava com o espanto do ex-patrão, riu e fez um breve mistério, enquanto Wilsinho se recuperava. Afinal, tinha montado todo o Fitti-1, colocado motor e polido como se fosse o carro fosse entrar na pista depois de estar guardado durante anos. “O Wilson olhava a sua obra e não acreditava”, relembra Darci. “Ele se emocionou de juntar lágrimas nos olhos e me contagiou.”
Wilsinho pensava que aquele carro, ou o que restava dele, havia sido leiloado na Inglaterra, junto com todo o espólio da antiga Fittipaldi Automotive, fechada em dezembro de 1982. Não lembrava que o FD-01 tinha sido enviado à Embraer, em 1977, para fazer uma instalação elétrica de teste e não seguiu junto com os outros três modelos para a Inglaterra. Depois de feitos os testes e de o resultado ter sido passado para a fábrica na Europa, Darci buscou o carro na Embraer. Como não tinha onde guardar, levou-o para uma garagem que Roberto Jorge, um amigo dos Fittipaldi, tinha na Vila Carrão, bairro de São Paulo. Três anos depois, trouxe o Fitti-1 para a sua garagem e, pelo uma vez por mês, fazia o motor funcionar. Quando Wilsinho reencontrou o protótipo, pediu que Darci desmontasse o carro e guardasse as peças, porque ele tinha planos de restaurar aquele primeiro modelo do F-1 brasileiro.
Darci ainda recebeu visitas de curiosos que descobriram a existência do carro e falavam em comprá-lo para sua coleção. Mas desistiam ao verificar que restaurar é mais difícil que fazer um novo. É um trabalho artesanal, muito demorado, que implica recuperar desenhos e plantas. Aquele só se tornou realidade quando a Dana, que comemorou um século de existência em 2004, resolveu restaurar o FD-01 em sua plenitude, 30 anos depois.
Darci Medeiros, um paulista sessentão, nascido em 13 de novembro de 1943, dedicou toda a sua vida à mecânica e à preparação de carros de corrida. Foi parceiro de Wilsinho desde 1966 na extinta Equipe Dacon-Karman Ghia, e seguiu o Tigrão na aventura da construção do Volks-Fitti 1600, na Fórmula Vê, no Fitti-Porsche, no Volks-bimotor. Foi mecânico da Fórmula 2 na Europa e o funcionário número 1 da Copersucar-Fittipadi, na Fórmula 1.
Darci também nunca esqueceu aquela tarde chuvosa de outubro 1973, no Autódromo de Brands Hatch, na Inglaterra, quando Wilsinho lhe disse sem rodeios: “Olha, vamos voltar ao Brasil, mas não arruma emprego nenhum que eu tenho planos para você”. Darci obedeceu. Mas, chamado ao trabalho, assustou-se ao ver que Ricardo Divila estava projetando um carro de F-1 e ao descobrir que era nele que iria trabalhar.
No início ele não acreditou, achou que era blefe. Se preparar um Fórmula 2 já era difícil, imagine um Fórmula 1. Mas não escondeu a satisfação de participar da novidade, que considerou uma demonstração de confiança em seu trabalho, pois nem sempre a relação com o patrão navegara em mar calmo, principalmente na época da Fórmula 2. “Certa feita, numa corrida em 1970, eu aprontei para o Wilson. O Ricardo Divila me deu a relação de marchas para montar no Brabham e, na pressa, coloquei a engrenagem da quinta marcha no lugar da quarta. A minha barbeiragem obrigou o Wilson a guiar de forma diferente desde a primeira volta e logo numa corrida em que ele disputou a ponta com o Tim Schenken. Apesar da dificuldade com o câmbio, o Wilson chegou em segundo e eu fiquei esperando a encrenca no final da corrida. O Tigrão veio bufando e tive que engolir a bronca”, conta ele.
Darci também lembra que aquela foi uma fase romântica do automobilismo. Tempos em que ajudou muito mecânico de equipe concorrente a trocar motor e muitas vezes foi ajudado por adversários na mesma operação. A alegria de participar do circo, de aprender muito e poder viver uma fase importante da Fórmula 1, trabalhando com os irmãos Fittipaldi e dividindo boxes com Jackie Stewart, Ronnie Peterson, Denny Hulme, Jack Brabham, Jacky Ickx, Carlos Reutemann e tantos outros cobrões, foi considerada um prêmio para o mecânico.
Porém não foram anos fáceis. Não era raro varar noites sem dormir, em véspera de corrida, comendo sanduíches com a mão suja de graxa e trabalhando para colocar um carro que bateu, ou teve câmbio ou motor quebrado, pronto para largar na manhã seguinte. “Mas não me arrependo, e começaria tudo de novo com o maior prazer”, sustenta Darci.
Para o apaixonado mecânico, restaurar o Fitti-1 foi reviver a trajetória da construção do primeiro Fórmula 1 nacional. Cada parte refeita trazia-lhe à memória todo o histórico do protótipo. Peças que viu nascer na prancheta de Divila e depois serem modeladas, fundidas ou torneadas, para compor parte do quebra-cabeça do Fitti-1. Lembra do falecido Chico Picciuco montando a carenagem traseira de alumínio a bico de maçarico, porque na época a solda de argônio ainda era desconhecida.
O trabalho de ressuscitar o Fitti-1 foi feito com carinho, a quatro mãos, por Darci e pelo filho Peterson de Jesus – nome dado em homenagem a Ronnie Peterson, o piloto da F-1, morto no GP de Monza em 1978. O motor é o mesmo Ford-Cosworth V8 que foi instalado há 30 anos no Fitti-1, mas, como ficou muito tempo parado, foi todo desmontado e recondicionado por Elísio Casado (60 anos), também testemunha do nascimento do protótipo de F-1 brasileiro.
Outra providência de Darci Medeiros foi a de se preparar para o retorno do FD-01. Há 30 anos, no dia do primeiro teste do carro, ele foi para a pista com se fosse viajar para outra galáxia e teve que fazer força para disfarçar as lágrimas, quando Wilsinho iniciou a primeira volta com o Fitti-1. Dia 10 de novembro de 2004, ele nem se preocupou quando os soluços rolaram. Ao lado do filho Peterson de Jesus, seu parceiro na obra de reconstrução do FD-01, Darci Medeiros ouviu música quando o velho motor Cosworth V8 roncou, e tinha um passarinho em cada ombro enquanto o Fitti-1 desfilava em Interlagos. Se isso fosse possível, dir-se-ia que ele estava mais feliz do que Wilson Fittipaldi Júnior.
Luís Henrique de Almeida, o Colinha velho de boxe
Mecânico desde 1967, Luís Henrique ganhou o apelido de Colinha, primeiro, por colar as tampas dos tuchos argentinos do motor do Opala do piloto Pedro Victor de Lamare, em 1971, e depois, por solucionar os problemas mecânicos na base de adesivos.
Colinha passou o ano de 1972 na Europa, como mecânico do mesmo de Lamare, nos protótipos 2 litros, e ao retornar foi convidado a trabalhar para os Fittipaldi. Tinha 25 anos quando entrou para o time de mecânicos brasileiros do Fitti-1, assumindo no setor de suspensão, montagem e alinhamento da geometria. “Fizemos um trabalho muito sério”, garante Colinha. “O Wilsinho era explosivo, xingava, mas era um bom patrão, Trabalhávamos muito, às vezes varávamos a noite para aprontar as peças e montar as partes, mas não perdíamos o entusiasmo.”
Colinha não só participou de toda a construção do FD-01, dos testes até a estréia no GP da Argentina de 1975, como se mudou com a Fittipaldi para a Europa. Morou, juntamente com Darci, Joel e o desenhista Odilon da Costa Franco, numa casa alugada em Reading, onde ficava a subsede da Fittipaldi na Inglaterra. Pagavam 12 libras por cabeça, das 40 semanais que ganhavam – 72 dólares, em 1975.
Um salário considerado bom, pois dava para fazer alguma economia, além de custear com folga casa e comida. O cardápio, na verdade, não variava muito. Limitava-se a hambúrguer no almoço e comida chinesa no jantar. O cafezinho era feito por eles, mas a receita ainda possibilitou formar uma sociedade para compra e desfrute de um Austin A70 usado. Um carro “cinza-nevoeiro” com o qual faziam passeios a Londres nos fins de semana para conhecer o Big Ben, a Tower Bridge, o Castelo de Buckingham, sempre pilotado por Colinha, o único a se habilitar com carteira internacional.
Entre as poucas extravagâncias a que o quarteto se dava ao luxo, nos sábados sem corrida, sobressaiam-se as ceias nos restaurante italianos de Londres. Às vezes, fechavam a noite com a excursão cultural aos cinemas. Numa delas assistiram a O Último Tango em Paris. O polêmico filme interpretado por Marlon Brando e Maria Schneider, eles reviram, impudicos, três vezes – a última delas, acompanhados do patrão Wilsinho. De dramático, Colinha recorda os acontecimentos do GP da Áustria de 1975, no qual morreu o piloto americano Mark Donhoue. Wilsinho também sofreu um forte acidente nos treinos de classificação. No mais, foi um tempo trabalhoso, mas feliz.
A última corrida em que Colinha trabalhou no Fitti-1 foi o GP do Estados Unidos, em Watkins Glen, em 5 de outubro de 1975, também a derradeira prova disputada por Wilsinho Fittipaldi na Fórmula 1. Deixou a Fittipaldi mas nunca saiu da “graxa”. Continua preparando carros de corrida, com a ajuda da mulher Luísa, a quem chama de “minha mecânica chefe”, e que já namorava quando começou a trabalhar na construção do F-1 brasileiro. Pai de duas filhas, prestes a completar bodas de prata, Colinha vive do preparo nos carros da Copa São Paulo, mas não esquece o que viveu na saga do F-1 brasileiro há 30 anos. Reminiscências que Luís Henrique de Almeida revive e relata, entre saudoso e satisfeito, aos amigos que visitam a sua oficina em Interlagos.