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Eraldo Gomes da Silva. Imagem: Marcelo Spatafora

Eraldo Gomes da Silva, em ritmo de aventura

Eraldo se considerava um estranho no ninho. Era mecânico de manutenção de máquinas e não gostava de carro de corrida. Sua vida mudou no dia em que foi levar as filhas para ver o automóvel Lola que seu irmão Erivaldo estava preparando para o cantor Roberto Carlos usar no filme Em Ritmo de Aventura, na fábrica Avalone. Foi aí que deparou com a dificuldade do irmão de moldar o santantônio – arco anticapotagem colocado sobre a cabeça do piloto – e resolveu dar-lhe uma ajuda.

Mandou esquentar meio balde de areia fina, com a qual encheu o tubo. Fez a marcação, pegou maçarico e moldou a barra anticapotagem em uma hora e meia. “Sem rugas e em exatos 730 milímetros, como exigia o projeto”, lembra Eraldo com uma disfarçada ponta de orgulho. Foi o suficiente para o construtor de carros de corrida Antônio Carlos Avalone propor-lhe um emprego. Eraldo resistiu. Não queria arriscar a boa situação numa sólida fábrica de plásticos, mas concordou em fazer algumas tarefas fora do expediente. Porém, a insistência do irmão foi tanta que ele cedeu e passou a fazer gabaritos e a fixar carenagens, até transformar-se num faz-tudo nos protótipos Avalone.

Até pegou gosto pelo novo ofício, mas, como o patrão era pouco pontual no pagamento, voltou à mecânica de manutenção. Meses depois, em 1973, Eraldo foi recomendado para fazer um aerofólio de dois metros para o Porsche 917 de Wilson Fittipaldi. Fez e colocou. Também não recebeu pelo trabalho, mas valeu como recomendação. Meio ano depois, foi chamado por Wilsinho para trabalhar na construção do Fitti-1 e, sem perguntar quanto ele ganhava, propôs-lhe o dobro do salário. Ora, dobrar a renda – na época de 1.600 cruzeiros – foi um argumento definitivo para Eraldo aceitar dobrar as chapas do F-1 brasileiro, com registro na carteira de trabalho, plano de saúde e, o mais importante, recebendo.

Não entendia nada de carro de corrida e ia começar trabalhando na execução do gabarito de um Fórmula 1, orientado por Yoshiatsu Itoh. “Um japonês tão inteligente quanto exigente”, no juízo de Eraldo. Também foi companheiro do desenhista Odilon da Costa Franco Jr., nas pesquisas pelos depósitos de ferro-velho selecionando material para fabricar o primeiro gabarito do FD-01. Aprendeu e dobrou muita chapa de duralumínio baseado no desenho e nos moldes em cartolina que Ricardo Divila lhe entregava. Também fixou milhares de rebites unindo as partes do sólido cockpit do primeiro Fórmula 1 brasileiro. E o mecânico de máquinas de manutenção, que fazia questão de não entender nada de motores, foi dobrando chapas e tomando muito gosto pela obra que lhe saía das mãos.

Ajudou na construção dos primeiros monocoques e só deixou a fábrica da rua Parelheiros quando a Fittipaldi Empreendimentos transferiu-se para a Inglaterra e passou a ser Fittipaldi Automotive. Aí, ficou torcendo pelo sucesso do Fitti-1 e com dificuldade de arrumar emprego. Não pela competência, mas para conseguir quem lhe pagasse os 3500 cruzeiros do salário que constava na carteira. Teve que concordar em baixar o salário para voltar a ser mecânico de manutenção de máquinas.

Aos 65 anos, 30 após a construção do Fitti-1, Eraldo Gomes da Silva faz questão de reforçar que aquela foi a fase em que mais progrediu profissionalmente.

Geraldo Alves, o crente na solda

Geraldinho, João Paolo e Luís Henrique Colinha. Imagem: Marcelo Spatafora
Geraldinho, João Paolo e Luís Henrique Colinha.
Imagem: Marcelo Spatafora

Geraldo Alves, o Geraldinho dos bastidores do automobilismo de competição, embora homônimo de sambista famoso está mais para filósofo. É de sua lavra, por exemplo, o pensamento de que não tem televisão porque “é personagem e não telespectador do mundo”. Evangélico fervoroso, pai de sete filhos, Geraldo prega na igreja Congregação Cristã do Brasil, onde, entre outros “irmãos”, é habitualmente ouvido pelo ex-boxeador Maguila e pelo ex-craque corintiano Biro-Biro.

Geraldinho participou de toda a vida automobilística dos irmãos Fittipaldi. Esteve com Wilson e Emerson desde que eles iniciaram a construção dos Fórmula Vê, passando por Volks bimotor e Fitti-Porsche, na década de 60. Soldou cada um dos Fórmula Vê que saíram da fábrica dos irmãos Fittipaldi e foram testados em pleno leito da avenida do Socorro, no bairro de Interlagos. Geraldo foi apresentado aos Fittipaldi por Chico Piciuto, co-projetista dos F-Vê que já conhecia a fama de bom soldador do jovem mineiro de 18 anos, nascido em Uberaba.

“Eu só não trabalhei com o Wilsinho quando ele foi para a Inglaterra, competir na Fórmula 3 européia, em 1969. Porém, tão logo ele iniciou o projeto do Fórmula 1, me chamou e me enviou para um estágio de especialização em soldas de argônio e alumínio na Embraer”, conta orgulhoso o soldador.

Geraldinho não lembra exatamente os meses em que estagiou na sede da Embraer, mas garante que foi tempo suficiente para sair de lá “muito bom”. E foi muito bom que se tornou o primeiro soldador da fábrica e especialista de confiança do projetista Ricardo Divila e de Itoh, o supervisor técnico.

Geraldinho também é generoso com os Fittipaldi: “Eu trabalhei a maior parte da minha vida com eles. Ganhei os melhores salários do mercado de mecânicos. Todos que colaboraram, na fase do Fórmula 1, se deram bem. Saíram com boa formação profissional e se estabeleceram com oficinas próprias.”

Geraldo Alves garante que se lembra do protótipo desde que soldou a primeira longarina da estrutura do gabarito – “a alma do Fitti-1”. Recorda cada peça agregada e enxerga no carro reconstruído pela Dana a sua impressão digital. “Acho que esse carro também é um pouco meu”, reivindica emocionado.

Adílson Aires, o que virou asa

Adilson foi o primeiro a chegar ao prédio da avenida Parelheiros. Tinha trabalhado com o piloto Pedro Victor de Lamare, que o indicou a Wilsinho. Chegou no final de 1973 e no início de 1974 teve a incumbência de receber as caixas com uma preciosa carga: o McLarem M23, com o qual Emerson Fittipaldi ia competir naquela temporada. Assistiu à sua montagem, à apresentação de Emerson no McLaren no Autódromo de Interlagos e, depois do teste de pneus Goodyear, viu-os partir para o GP da Argentina. Duas semanas depois apareceram os pedreiros e começaram as obras da fábrica para a construção do Fitti-1.

A primeira boa surpresa de Adilson Aires foi o salário. Dos 350 cruzeiros passou a 1.500, registrados na carteira, que guarda até hoje. “Eu tinha 18 anos, era mecânico assistente, mas me considerei rico”, brinca o cinquentão. Antes de meter a mão na graxa, Adilson ficou tomando conta do prédio e depois colaborou na instalação da fábrica. Pintou paredes, ajudou na colocação do epóxi laranja no piso e testemunhou a formação da equipe. Deu boas-vindas a Divila, Itoh, Colinha, Geraldinho, Joel, Eraldo, Paolo e todo o pessoal do desenho e da administração.

Deixou a Fittipaldi em 1976 e transferiu-se da Super Vê para ser mecânico bicampeão com Chiquinho Lameirão e Nélson Piquet, com quem partiu para a Europa para trabalhar na Fórmula 3 inglesa.

Voltou ao Brasil e, em 1981, ganhou o apelido de Adilson Asa, por ter feito os Super Vê no estilo wing car para Élvio Divani, Guaraná Menezes e Dárcio dos Santos, tio de Rubinho Barrichello. Em 2002, Adilson partiu para a construção de um protótipo Endurance – revolucionário, nas palavras do construtor – e continua trabalhando para Nélson Piquet, na sua fábrica de São Paulo, a 300 metros do portão principal do Autódromo de Interlagos, onde vive com a mulher Iwa e as filhas.

João Paolo Pascuale, de vasto repertório

Filho de Paolo, um imigrante romano, kartista de 1968 a 1971, João Paolo passou à antiga Divisão 3 brasileira preparando os motores na oficina do pai, localizada na avenida Brigadeiro Luís Antônio, no centro de São Paulo. Sem muitos recursos, o jovem mecânico varava a noite preparando os carros dos amigos pilotos da categoria de arrancadas, para ganhar o dinheiro com o qual envenenava seus veículos de competição.

Em 1968 ele já conhecia Wilson Fittipaldi, de quem comprou um kit de Fusca de fibra para adaptar num carro do piloto Silvio Toledo Pisa, usado para competir nos 500 Quilômetros de Brasília.

Seis anos depois, João Paolo continuava nas lidas de preparo de motor e esteve prestes a ir trabalhar na Fórmula 1, na escuderia Brabham, como mecânico de José Carlos Pace, o Moco. Fato que só não se concretizou porque a equipe inglesa assumiu todo o trabalho técnico de boxe. Foi essa decepção que levou Angelo Pace, irmão do Moco, a indicar João Paolo a Wilsinho Fittipaldi, que resolveu testar o novo candidato no preparo do F-1 brasileiro. Foi sabatinado por Yoshiatsu Itoh, o supervisor técnico, e desafiado a desmontar o câmbio Hewland, que equiparia o Fitti-1. Deu-se bem. Mas, quando recebeu a ordem de montar o mesmo câmbio – cronometrado por Darci Medeiros –, sobrou uma engrenagem. Enquanto João Paolo matutava, Itoh e Darci se divertiam, porque haviam misturado uma engrenagem da caixa do câmbio do Porsche 917 com as do F-1, para confundir o novato.

Pascuale passou na primeira prova, mas a segunda foi mais difícil. Teria de desmontar os tanques de gasolina das laterais de um Surtees TS11, que servia de estudos para os técnicos. Nessa prova Paolo se atrapalhou. Suou ao pensar que seria necessário retirar toda a centena de rebites incrustada nas laterais do carro quando, na verdade, bastava afrouxar duas tampas e puxar o tanque (que era de borracha) para fora do cockpit. Foi um teste maroto para um estreante em carros de F-1, mas não impediu a sua contratação, pois, além de mecânico, Pascuale tinha habilidade no torno e acabou assumindo o sistema de refrigeração a água e algumas partes elétricas.

João Paolo participou de todo o processo de construção e testes do FD-01. Saiu no final de 1975, mas nem sempre conteve o gênio forte. Num certo dia, depois de toda a equipe ter trabalhado a noite inteira, os mecânicos entortaram um tensor da suspensão do protótipo ao baixá-lo do cavalete. Wilsinho desceu do escritório, que ficava no segundo andar, disparando uma metralhadora giratória de impropérios, principalmente sobre João Paolo.

O mecânico, tresnoitado e cansado, olhou para o patrão, sugeriu que ele enfiasse o carro num lugar impróprio e deu as costas ao emprego. Era conseqüência da fadiga geral, do esforço para cumprir os prazos que obrigavam a mutirões técnicos sem horários. No entanto, a demissão não durou mais que 48 horas, porque João Paolo entendeu que o Tigrão estava mais para bomba-relógio, mas não guardava mágoa. Atendeu à ponderação de Thomas Hardtmeier, cunhado de Wilsinho e gerente do pessoal, e voltou ao trabalho.

Foram capítulos da fase de construção do primeiro Fórmula 1 brasileiro, que João Paulo Pascuale recorda entre a saudade e o agradecimento. Em seu relatório, João Paolo afirma que poucos acreditavam num F-1 feito no Brasil. Entretanto, bastou a apresentação do FD-01 em Brasília para que os enviados especiais das revistas Autosprint, italiana, e Autosport, inglesa, admirarem a qualidade da construção e as inovações aerodinâmicas, principalmente pelo estilo compacto e carenado da parte traseira do Fitti-1. Uma novidade em matéria de aerodinâmica e refrigeração para os carros da F-1 dos anos 70.

Trinta anos depois, aos 53, casado e sem filhos, João Paolo Pascuale enriqueceu a biografia de histórias e o ofício de conhecimentos. Um repertório que aplica na restauração de automóveis clássicos – Ferrari e Porsche – e nas máquinas de competição, que prepara na oficina à beira da represa de Guarapiranga, na zona sul de São Paulo.