Hugo Ferreira, presidente da Dana da América do Sul até 2004, lembra que há 30 anos estava no escritório em São Paulo, quando foi informado de que Wilson Fittipaldi Júnior, o piloto de Fórmula 1, solicitava uma audiência. Ferreira, um admirador de corridas que acompanhava a categoria desde as proezas de Juan Manuel Fangio, ficou entre curioso e satisfeito por receber o piloto brasileiro, mas surpreendeu-se quando Wilsinho pediu a colaboração da sua empresa para o projeto de Fórmula 1 que ele pretendia construir no Brasil.
Ora, para Ferreira, um engenheiro mecânico que na época dirigia a operação de eixos diferenciais de uma empresa ligada à indústria automobilística, o convite de Wilsinho para que fabricasse peças para o protótipo Fittipaldi era uma provocação. Uma forma de participar daquele mundo no qual todos os domingos de manhã ele vivia as emoções pela televisão, torcendo por Emerson Fittipaldi.
Em 1974, a então Albarus vivia uma fase de expansão de desenvolvimento de sua engenharia, portanto um momento oportuno para colaborar no projeto dos Fittipaldi. Uma experiência atraente que se encaixava perfeitamente ao entusiasmo dos seus jovens engenheiros.
“No começo dos anos 70”, conta Ferreira, “os protótipos F-1 europeus já usavam a junta homocinética. Mas, como a Fittipaldi tinha dificuldade em importá-la e a homocinética que nós fabricávamos não atendia as medidas exigidas pelo Fitti-1, a alternativa foi a de fornecer-lhes um sistema de transmissão de força do motor para as rodas traseiras baseado em um cardã. Esse conjunto é a base da fundação da empresa mãe, a Dana, nos Estados Umidos, apoiada na invenção de Clarence Spicer, fundador da organização e inventor da junta universal – a popular cruzeta, que permite a transferência de força do motor para o eixo diferencial, ou para as rodas, como foi o caso do Fittipaldi FD-01.
A cruzeta também teve papel vital na fundação da empresa no Brasil, em 1957. Por solicitação da Ford, a Albarus – que era então uma oficina de precisão do Rio Grande do Sul – produziu um lote de mil cruzetas para reposição dos caminhões Ford, em uma época que não havia indústria automobilística nacional. A conexão com a Dana, então Spicer Manufacturing, foi armada e 10 anos depois a sociedade estava feita. “Projetar componentes para um Fórmula1 naquela época era um privilégio, um desafio novo para nós, pois, além da novidade, o serviço teria que ser otimizado em tempo recorde”, lembra o engenheiro.
A missão era tão instigante que Hugo Ferreira assumiu a empreitada de fabricar os semi-eixos para o Fittipaldi F-1 sem o envolvimento da matriz da Dana, em Toledo, Ohio, nos Estados Unidos e passou a missão para a engenharia central, que em 1974, localizava-se em Porto Alegre. Nem o projeto nem a execução previam lucro, a não ser o técnico. Nada foi além dos custos, pois o ânimo era o de colaborar, principalmente por se tratar de um projeto inédito.
“Não era uma tarefa fácil. Nós tivemos alguns encontros com o Ricardo Divila, projetista do Fitti-1, que nos passava todos os dados e as informações do carro para projetar os semi-eixos: a distância entre a roda e o diferencial, a inclinação em que ia trabalhar, o torque do motor e o tamanho dos pneus. A bitola dos pneus foi o nosso grande problema, por causa do arrasto que provocava.
Para nós era, até certo ponto, uma novidade. Se comparássemos com os maiores carros convencionais daquela época, o Dodge Dart ou o Galaxie, a diferença de arrasto do Fórmula 1 era de 10 para 1. Uma relação que nos obrigou a usar um coeficiente de segurança muito mais elevado do que se usaria num projeto tradicional.”
“Estipula-se um número considerado adequado, – explica Ferreira – digamos 10, multiplica-se por 3 e faz tudo para 30. É a forma de nos garantirmos contra uma anomalia vá causar problemas.” Discutida a primeira fase do projeto, a execução passou para a equipe de Porto Alegre, finalizada dentro da engenharia experimental, porque, além de os eixos serem extracurtos, a produção pequena não justificava produzi-los na linha de montagem. Depois de prontos, os conjuntos eram enviados a São Paulo para balanceamento e alguns ajustes e depois entregues em quantidade suficiente para testes e algumas unidades reservas.
Ferreira viu alguns testes práticos do carro em Interlagos e foi a Brasília assistir à apresentação do FD-01 no salão negro do Congresso Nacional. “Eu encaminhei o projeto, mas meu envolvimento maior aconteceu após a estréia do carro. Foi a mim que o Wilsinho procurou depois do acidente no GP da Argentina de 1975, achando que o acidente tinha sido causado pela quebra do eixo que nós fabricamos. O Wilson chegou no meu escritório na terça-feira posterior ao grande prêmio e disse: ‘Não completei a corrida por causa da quebra do semi-eixo”.
“Eu quase desmaiei”, recorda Ferreira. “Mas fiquei intrigado porque todos os componentes tinham passado por testes rígidos, o que tornava a quebra pouco provável. Até porque todos os testes de pista com o Fitti-1, em Interlagos – o equivalente a vários grandes prêmios –, foram feitos com os mesmos semi-eixos, e não acusaram nenhum problema.”
Mesmo assim, os técnicos da Albarus recolheram o que tinha sobrado da peça e encaminharam ao exame metalúrgico. No laboratório, a análise metalográfica da fratura do semi-eixo, feita com microscópio, concluiu que a quebra foi causada pelo impacto (Wilsinho bateu forte na corrida depois da quebra da suspensão) e não por fadiga de material ou por excesso de carga.
Passado esse primeiro susto, os semi-eixos Albarus continuaram equipando o FD-01, e as duas versões derivadas dele, o 02 e 03, nos 15 grandes prêmios da temporada de 1975, até a aposentadoria do modelo, no GP Brasil de 1976. Nessa prova, disputada em 25 de janeiro, Emerson Fittipaldi estreou o FD-04, enquanto Ingo Hoffmann ainda competia com o modelo antigo.
No projeto do FD-04, Wilsinho e Divila consultaram a Albarus sobre a possibilidade de produzir um novo semi-eixo mais reforçado. Porém, para dar o reforço seria necessário aumentar exageradamente seu peso. Os engenheiros da Albarus então concluíram que a melhor solução seria a Fittipaldi buscar o apoio de uma empresa parceira, no caso a inglesa GKN, e passar a utilizar o sistema de juntas homocinéticas, o que foi aceito pelos construtores.
“Recordando hoje, mesmo que a nossa participação tenha sido por um curto período, ela valeu muito. Fomos ousados, tivemos a glória de ver nosso produto em um carro brasileiro de Fórmula 1 e ainda aprendemos muito com a experiência”, resume, Ferreira.
E já que esteve presente no lançamento do primeiro F-1 brasileiro, em Brasília, Ferreira também testemunhou em Interlagos o FD-01 reencarnar, com os mesmos semi-eixos fabricados há 30 anos. O que ele não esperava era sair do autódromo com um troféu. Wilsinho Fittipaldi presenteou o engenheiro com a sua maior relíquia de piloto: o capacete com que competiu na F-1.
Erni Koppe, Benedito Santoro, Francisco D’Avila – a Trindade de Gravataí
As primeiras informações sobre os semi-eixos da junta universal, enviadas de São Paulo pelo gerente da Divisão de Diferenciais, Hugo Ferreira, caíram na engenharia experimental da antiga unidade da Albarus no bairro de Sarandi, em Porto Alegre, nas mesas, pranchetas e no entusiasmo de três técnicos.
Francisco D’Ávila, Erni Koppe e Benedito Santoro – um trio de jovens engenheiros que, mais de 30 anos depois, são, respectivamente, gerente comercial, gerente de exportação e consultor técnico da empresa.
Francisco de Assis D’Ávila, 59 anos, engenheiro mecânico, foi o autor do desenho dos componentes e colaborou na construção e desenvolvimento da junta universal do Fitti-1. Chico D’Ávila, como é tratado e conhecido pelos 1900 funcionários da Dana de Gravataí, na Grande Porto Alegre, conta como foi a experiência de projetar os semi-eixos do FD-01 “Nós já fabricávamos a junta homocinética, mas ainda não dispúnhamos dela para carros de competição, principalmente para um Fórmula 1. A missão, então, era a de projetar uma junta universal. Tínhamos de desenhar todos os componentes obedecendo as medidas exatas entre o diferencial (caixa de câmbio) e as rodas traseiras do Fitti-1. Em resumo, tivemos de fazer uma nova pontuva – eixo com entalhes macho -, cruzeta, com furo no meio, para aliviar o peso, mais a luva normal, o garfo, ponteira e flange, mais o desenho do conjunto.
“Tudo isso dentro do rigoroso critério de não ultrapassar o peso limite dos 6 quilos em cada um dos dois semi-eixos (um em cada lado da caixa de câmbio), obedecendo o imutável espaço físico definido entre o diferencial e as rodas traseiras do Fitti-1.
“O primeiro conjunto do cardã foi baseado nos componentes dos veículos Willys, Rural e Jeep, mas não aprovaram. Eram frágeis para resistir ao torque do motor. Refizemos os cálculos, mas dessa vez de posse de informações muito importantes para a resistência dos cardans, que a Fittipaldi não havia fornecido. Entre eles, um dado vital, referente ao ingresso do carro em determinadas curvas, quando mais de 80% da capacidade do motor transfere-se para uma única roda.
“Cientes do fenômeno, passamos a usar a cruzeta e demais componentes do cardan da pick-up Ford F-100, que já eram reforçados por suportar um torque mais alto. Tivemos, obviamente, que adequá-los para chegar ao limite do peso, pois conforme se aumenta a capacidade de torque a cruzeta cresce de tamanho. Deu certo – e as peças estão lá até hoje, incrustadas no Fitti-1.”
Erni Koppe, 64 anos, engenheiro mecânico, gerente de exportação da Divisão de Cardans, trabalha há mais de 40 anos no mesmo setor. É o mais antigo funcionário brasileiro da Dana em atividade, e já prestou serviço à empresa em 88 países. Súdito da exatidão, como a profissão exige, Koppe lembra que passou 14 anos, 10 dias e 8 horas só se especializando em tratamento de metais, em Sttutgart, Alemanha. Mas também não esqueceu as artimanhas na colaboração no projeto do cardan do primeiro Fórmula 1, brasileiro. Eis o que Koppe arquivou nas suas memórias.
“Foi um desafio sedutor para nós, jovens engenheiros mecânicos da década de 70. Fizemos todos os cálculos baseados nas informações que nos forneceram e metemos mãos à obra. Em 1974 não havia os computadores de que dispomos neste milênio, nos quais basta jogar os dados no sistema que em 20 segundos se tem todo um perfil de qual cardan deve ser usado.
“Então começamos a inventar. Levamos um dia e meio envolvidos nos cálculos, definindo o desenho e esboçando o estudo da junta universal do Fittipaldi Fórmula 1, tirando peso onde era possível. Essa foi a primeira parte do estudo, em que chegamos à conclusão que deveria ser um eixo da série 1310. Essa série era a menor que tínhamos dentro do sistema, na época, para adequar-se ao peso limite dos 6 quilos e não comprometer a relação peso-potência do Fitti-1. “As peças foram cuidadosamente retificadas com toda a precisão, no diâmetro e no comprimento, para dar a melhor vida ao semi-eixo. Tudo feito com material da nossa linha de produção. Não houve necessidade de usar aço especial ou outra liga fora dos nossos padrões. O desenho sim é que foi diferente dos cardans normais daquela época. A cruzeta, por exemplo,
foi projetada com um furo no centro e a ponteira do eixo foi aliviada no miolo. Resumindo: para mim foi uma experiência nova, porque na época nós só fazíamos aplicações nos carros de passeio, utilitários e caminhões. Jamais tínhamos nos envolvido com carros de competição – de Fórmula 1, então, nem sonhávamos. Por isso, projetar as peças foi fascinante e fazê-las funcionar foi o melhor prêmio.
“Mas, além de inusitada e divertida, a experiência rendeu lucros técnicos com as pesquisas desenvolvidas no Fitti-1. O mais importante foi a cruzeta com lubrificação permanente, uma tecnologia desenvolvida especialmente para o F-1 brasileiro e que atualmente é exportada pela Dana de Gravataí para a Europa. Neste 2004, os caminhões italianos da Iveco equipam-se com a cruzeta com lubrificação permanente, igual à desenvolvida para o Fitti-1 – com exceção, claro, do furo no meio”.
Benedito Santoro, a terceira pessoa da trindade da Dana que projetou os semi-eixos para o Fittipaldi F-1, está há mais de 40 anos na organização.
“Eu fazia o meio-campo”, define Santoro ao começar o relato da sua participação no projeto do Fitti-1. “As peças eram desenvolvidas, feitas e testadas em Porto Alegre e enviadas para São Paulo. Dali eu as levava para a fábrica da Fittipaldi em Interlagos. Me impressionava o entusiasmo do Wilson e do Emerson Fittipaldi com o projeto. A vontade de realizar aquele sonho estava no sangue deles. E só mesmo com aquela garra conseguiriam construir um carro de Fórmula 1, devido aos recursos disponíveis no Brasil. Eu admirava o pioneirismo da empreitada, porque os entraves eram enormes, naqueles anos 70.
“Sentia esse clima nos assíduos contatos com os irmãos Fittipaldi. Minha missão era reportar para a fábrica os andamentos do projeto do carro e do cronograma do nosso fornecimento. Acompanhei toda a aventura desde os primeiros esboços, a materialização das peças, a montagem do protótipo e os testes do FD-01 em Interlagos. Só não sentei no carro porque não cabia no cockpit. Mas foi ótimo ter acompanhado o nascimento do primeiro Fórmula 1 brasileiro e voltar a vê-lo, restaurado, 30 anos depois. Uma iniciativa feliz que coincide com o centenário de Clarence Spicer, o homem que inventou a cruzeta”.