O que pode acontecer quando senhores grisalhos de mais de meio século se encontram para relembrar uma aventura vivida há 30 anos? Não eram formandos de nenhuma turma de 1974, não comemoravam a fundação de um clube nem três décadas do título de campeão de um time de futebol. Aquela meia dúzia de cidadãos brasileiros viveu o privilégio pioneiro de construir o FD-01 – Fittipaldi-Divila número 1 –, o primeiro Fórmula 1 brasileiro.
Darci Medeiros, Luís Henrique de Almeida, Geraldo Alves, Adilson Aires, Eraldo Gomes da Silva e João Paolo Pascuale voltaram ao velho prédio no número 6322 da antiga avenida Parelheiros, em frente ao portão principal de Interlagos, onde ajudaram Wilson Fittipaldi Júnior a colocar nas pistas seu protótipo Fórmula 1, para festejar a renascimento da sua obra, devolvida à memória nacional pela Dana.
Esqueceram os maus momentos para dar gostosas gargalhadas revivendo as histórias da parte mais importante de suas vidas profissionais num lugar chamado, curiosamente, de Pódio. Um bar, restaurante e pensão, onde outrora funcionou a sede da Fittipaldi Empreendimentos, razão social da grande aventura automobilística brasileira no fascinante circo da Fórmula 1.
O retorno ao velho palco, depois de 30 anos, provocou curiosas reminiscências. Mostraram para Luis Fernando e Márcia Rodrigues Oliveira, locatários do imóvel de 1250 metros quadrados pelos quais pagam 1500 reais mensais, que hoje eles dormem num dos três grandes quartos onde Ricardo Divila riscava os esboços do Fitti-1.
Nos demais cômodos – três salas, lavabo, banheiro e o corredor, que se comunicava com o prédio dos tornos, fresas e gabaritos dos chassis – transformados em pensão com seis dormitórios, ficava o antigo almoxarifado, onde estiveram estacionados, além do Porsche 917, os Lotus, March, Tyrrell e Surtees, carros F-1 para consulta técnica.
Célia Navarro, cozinheira que trabalha há oito anos no restaurante Pódio, custa a crer que o lugar em que prepara sua feijoada, famosa nos arredores de Interlagos, é o local exato em que antes Geraldo Alves soldou, entre outras peças, os canos do escapamento do Fitti-1.
Era inevitável, portanto, que os ex-operários da Fittipaldi revivessem passagens que protagonizaram nas lidas da construção daquela que foi a obra mais importante de suas vidas. Ninguém esqueceu, por exemplo, que Ricardo Divila era o maior glutão da equipe. E, como se não bastasse injetarem tinta nas maçãs do chefe, seu apetite foi homenageado por Darci com a caricatura do projetista em forma de lombriga – tipo solitária – empunhando faca e garfo, pronto para atacar um lauto prato de macarrão.
João Paolo também se lembra da forma como foi à forra dos costumeiros testes de competência a que Yoshiatsu Itoh submetia seus subordinados. O japonês divertia-se em misturar as engrenagens da caixa de câmbio do F-1 com as do Porsche 917 para depois mandar o mecânico montá-las. João Paolo preparou a vingança explorando o medo que Itoh tinha de contrair meningite, em forte surto em São Paulo, na época. Aproveitou a hora do almoço para sentar-se ao lado do chefe e antes da sobremesa colocou três comprimidos de sonrisal na boca, tomou um gole de água e começou a expelir uma baba espumante. Antes, havia combinado com os demais mecânicos para diagnosticarem assustados que se tratava de meningite. Segundo João Paolo, Itoh saiu esbaforido da fábrica e só voltou quando Wilsinho convenceu o japonês de que tudo não passava de um trote do inspirado mecânico.
João Paolo também judiou de Geraldo Alves, um adventista fervoroso, que não suportava duas coisas: que interrompessem seu trabalho e que proferissem palavrões. Daí João Paolo explorar o caráter do amigo quando precisava de solda em alguma peça. Deitava no chão e simulava um dialogo repleto de palavrões com a peça. Geraldinho não resistia mais de três minutos. Interrompia o que estava fazendo e soldava a peça para se livrar da impertinência.
Nem os descuidos técnicos escapavam da gozação dos antigos mecânicos do Fitti-1. Lembram que certa madrugada, depois de 18 horas de árduo trabalho de toda a equipe e sob expectativa geral, Wilsinho foi experimentar o primeiro cockpit do FD-01, ainda sobre cavaletes. Não coube no habitáculo simplesmente porque as medidas do seu quadril tinham sido tiradas em pé, e sentado, como é normal, sobravam dois centímetros de cada lado. Um equívoco do qual só riem hoje, porque na hora o semblante do patrão não encorajava qualquer gracejo.
Mas, noutra feita, Eraldo não resistiu à oportunidade do deboche em cima de um desenho de Divila. O projetista entregou-lhe o plano de uma minúscula peça que não batia com o propósito, e Eraldo, por conta própria, refez um novo corte, direto na chapa de duralumínio. Deu certo. Recebeu os parabéns do engenheiro, mas não deixou por menos e assumiu a co-autoria do artefato, emendando abaixo da assinatura do projetista Ricardo Divila o seu crédito: “Eraldo G. Silva”.
Luís Henrique de Almeida, o Colinha, por sorte não levou a si e Geraldo Alves para os ares, quando pediu ao companheiro para soldar um tanque de combustível. Na pressa, Colinha não descarbonizou completamente o reservatório e, como ainda havia pressão interna no tanque, assim que Geraldinho encostou a chama para fazer a solda a peça foi pelos ares. “Meu capacete bateu no teto e quase perdi o pescoço”, lembra Geraldinho, ainda espantado.
Todos lembram que Darci tinha o hábito de cronometrar as tarefas. Media tudo. Desde a retirada e acoplamento da caixa de câmbio até as sonecas que os mecânicos tiravam após o almoço dentro dos Lotus, Brabham, Tyrrell e do Porsche 917. Também foi inesquecível a viagem e a estadia de nababo em Brasília, na apresentação do Fitti-1, quando, além do contínuo Wilson Cruvizeu, outros mecânicos estrearam em avião.
Outro fato vivo na memória dos seis mecânicos é o “terceiro expediente”, como Adilson Aires denominava o serão que ia das 8 da noite até a madrugada. Um turno iniciado após a sessão de filmes eróticos, com os quais Wilsinho brindava seus funcionários após a janta, para aliviar a tensão. Um prêmio que o adventista Geraldinho abominava. Baixava a cabeça e, sob os risos dos colegas, voltava à oficina, com um piedoso “Jesus perdoa vocês todos”.
Mas nem tudo aconteceu entre as paredes da fábrica. João Paolo Pascuale conta que, num teste de pneus em Interlagos, o falecido Joel Queiroz, na pressa, não encaixou bem os quatro parafusos da roda traseira esquerda. Quando Wilsinho contornava a curva da Ferradura, a roda passou voando sobre sua cabeça. “O Tigrão voltou furioso”, conta Paolo. “Mas, depois da corrida da pista até o boxe, ficou sem fôlego e nem xingou tudo a que tinha direito.”
Porém, em plena e descontraída confraternização, entre causos, risos e recordações, os velhos amigos guardaram um sentido e espontâneo minuto de silêncio. Foi de repente, quando se lembraram dos falecidos Chico Piciuto – o “mestre chapeador” reverenciado por todos – e Joel Queirós, companheiro desde as primeiras horas na construção do Fittipaldi F-1.