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Dona Rose na sede da Fundação. Imagem: Videography

Criado há mais de 30 anos em Porto Alegre, o Projeto Pescar hoje é referência no Brasil no que diz respeito ao treinamento de jovens provenientes de família de baixa renda para que possam ter mais chances de inserção no cada vez mais competitivo mercado de trabalho. O projeto foi criado de forma absolutamente pioneira pelo empresário Geraldo Linck, em 1976, fundador da Linck, uma empresa revendedora de máquinas e equipamentos rodoviários. Ele decidiu abrir espaço na própria empresa para que fossem ministradas aulas de mecânica automotiva para jovens. O sonho de Linck, hoje já falecido, era fugir do perfil assistencialista – não dar o peixe e, sim, ensinar a pescar. O pioneirismo da ação ainda impressiona a muitos e, hoje, Rose Marie Linck é Presidente de Honra da Fundação Projeto Pescar. Confira uma entrevista com ela e a emocionante história por trás de todos estes anos de Projeto Pescar.

Como começou a Fundação Projeto Pescar? Desde quando ela existe, e como surgiu a ideia inicial?

O Projeto Pescar começou em 1976, por uma iniciativa de meu marido, Geraldo Linck, que sempre teve uma visão muito especial da vida. Ele estava na casa dos 40 anos, começou a trabalhar muito cedo e sempre foi bem sucedido em tudo o que fez. Na saída de um jantar de negócios, ele viu um menino roubando uma carteira de um homem. Ficou com aquela cena na cabeça e, no dia seguinte, reuniu seus colaboradores mais imediatos – ele era presidente da Linck, uma revendedora de máquinas – e plantou o que era a ideia inicial do Projeto Pescar. Geraldo queria trazer os jovens provenientes de famílias de baixa renda para dentro da Linck, onde aprenderiam mecânica de máquinas – o assunto que era especialidade dentro da empresa. Entrou em contato com uma congregação de freiras que havia perto da sede da Linck e pediu que elas selecionassem uma turma de alunos – inicialmente, apenas homens, já que o curso que ele decidiu que poderia ser ministrado aos jovens era de mecânica. Foram selecionados 15 meninos que tinham de 12 a 15 anos. Vale ressaltar que a realidade era outra – hoje, trabalhamos com alunos de 16 a 19 anos. Esta primeira turma formou-se no final de 1976 e, a partir desta primeira experiência, o projeto foi se aperfeiçoando cada vez mais. A sala do Projeto Pescar ficava na frente da sala dele, que gostava de acompanhar o projeto bem de perto – literalmente. Durante dois anos, ele funcionou dentro da Linck e, depois, um terreno foi cedido pela Infraero a partir de uma conversa que tivemos com o superintendente da época para que o projeto acontecesse ali também. Mas sempre continuou dentro da Linck também – a primeira turma em outra empresa aconteceu 12 anos depois do início do projeto. O Projeto Pescar foi um sonho que virou realidade depois de muito trabalho.

A primeira turma formada pelo Projeto Pescar (1976). Imagem: arquivo Projeto Pescar
A primeira turma formada pelo Projeto Pescar (1976).
Imagem: arquivo Projeto Pescar

A Fundação Projeto Pescar foi instituticionalizada como Franquia Social em 1988. Como foi esta mudança? Esta ideia surgiu desde a criação do projeto, na década de 70?

Esta ideia surgiu mais tarde e, hoje, é uma das nossas maiores riquezas.Trabalhamos com uma rede de 920 empresas, de vários estados brasileiros, numa parceria em que todos saem ganhando. As companhias investem em instalações, material didático, uniforme dos alunos, alimentação e transporte, totalizando cerca de R$ 60 mil para a implantação do projeto. As próprias empresas buscam parcerias e o retorno social é incrível.

Uma mudança significativa na nossa estrutura aconteceu em 1992, quando começamos a pensar em transformar o projeto em Instituto ou Fundação. Descobrimos, então, que uma Fundação era muito mais difícil de ser formada, mas garantiria mais perenidade ao projeto. Fizemos um benchmarking em algumas Fundações americanas e percebemos que haveria mais chance de crescermos e conseguirmos recursos, além de uma gestão mais eficiente, com controllers. O Geraldo deixou em seu testamento uma grande doação para o patrimônio da Fundação quando faleceu, e esse era o objetivo dele, que queria ver seu sonho, sua paixão, crescer cada vez mais.

Quantas pessoas trabalham na Fundação atualmente? Que tipo de profissionais estão atuando na Fundação hoje?

Ao todo, temos 120 Unidades distribuídas pelo Brasil, em 10 Estados; e 20 Unidades no Exterior. Para manter esta estrutura, trabalham conosco 2.115 voluntários. Por contrato, os facilitadores que ficam dentro das empresas recebem um treinamento da Fundação Projeto Pescar e também apoio psicossocial – muitas pessoas não estão acostumadas a lidar com os jovens oriundos de famílias de baixa renda. Além disso, mantemos sempre o Projeto Pescar com foco na sua missão e visão. Mais 26 pessoas trabalham aqui na Fundação Projeto Pescar – cinco deles egressos do Projeto, inclusive. As 31 pessoas que trabalham na Diretoria e Conselhos, Biblioteca, Área Jurídica, Área de Qualificação e Acompanhamento são todos voluntários, de diversas áreas. Trabalhar com diversos saberes é muito enriquecedor. Nossa gestão é empresarial, mas sempre há espaço para vivências e formação. Há espaço para tudo isso no Terceiro Setor, desde que nunca se perca o foco inicial.

Que tipo de profissional, na opinião da senhora, é fundamental para o bom funcionamento de qualquer Fundação?

Eu acho que a fórmula que vimos que dá certo aqui na Fundação é a da equipe multiprofissional. Porém, essas pessoas também precisam ser multifocais – ou seja, gente que aceita e respeita outras visões, de outras áreas do conhecimento. Temos aqui pessoas que trabalham em diversas áreas. Algumas pessoas acreditam que basta um profissional de assistência social para fazer um projeto funcionar, porém sabemos que a comunicação é importante na ajuda da captação de recursos, sabemos que uma gestão forte e eficiente é a chave para o sucesso de qualquer organização – seja ela privada ou não-governamental. Por isso, acredito que, entre os dirigentes de uma Fundação, é necessário que hajam profissionais de várias áreas, com vários olhares sobre a mesma coisa. Sempre, é claro, mantendo o foco na nossa missão.

E a captação de recursos, de que maneira é feita? Quais os obstáculos mais encontrados neste aspecto de gerenciar uma Fundação?

Este é um quesito que exige muito trabalho. É preciso mostrar nosso trabalho, seus resultados – não apenas de forma qualitativa, mas também quantitativa. Todo o ano fazemos uma publicação de Balanço Anual, recheada com números e histórias de casos. Em 2008, lançamos um livro, “Pescadores de sonhos”, com relatos de experiências dos jovens que já passaram pelo Projeto Pescar. Tudo isso ajuda, hoje a imprensa nos procura muito espontaneamente, e é porque uma Fundação tem que mostrar seus resultados. O Projeto Pescar nasceu na Linck, mas hoje a empresa é apenas uma das tantas companhias que apoiam o projeto. Acredito que nosso sucesso veio do trabalho em rede, porque sempre buscamos mais atores para a nossa história, e isso é desafiador e facilita também porque sempre temos novos parceiros. Um grande exemplo de sucesso na captação de recursos é a Dona Eva Sopher – eu lembro que quando ela começou a falar no Multipalco todos achavam que era loucura, que o projeto tinha um orçamento gigantesco. Mas ela vai construindo e mostrando – não só para os empresários, mas para a população – o que está sendo feito. É uma boa forma, também, de conseguir novas pessoas interessadas em colocar recursos em um projeto.

Uma das turmas formadas pelo Grupo Palmero - Argentina. Imagem: arquivo Projeto Pescar
Uma das turmas formadas pelo Grupo Palmero – Argentina.
Imagem: arquivo Projeto Pescar

E o projeto na Argentina, quando iniciou?

Em 2003, fiz uma viagem para a Argentina onde encontrei o Yoshio Kawahami, CEO da Volvo Latinoamerica. Conversamos sobre o Projeto Pescar e ele me indicou também o Eduardo Palmero, do Grupo Palmero, e o projeto começou a acontecer na Argentina logo depois. Isso graças ao fato do Geraldo sempre ter tido ótimos contatos com estas pessoas e também do interesse deles em ter um projeto que acontecesse dentro das suas empresas, uma fórmula que funciona muito bem. Os resultados podem ser conferidos in loco. Hoje, temos 19 unidades na Argentina e uma no Paraguai, dentro da Luminotecnia Electricidad, prova de que é possível, sim, trabalhar em rede inclusive no exterior.

A senhora vê alguma mudança no perfil assistencialista histórico no Brasil? Há uma expectativa das pessoas de que as empresas invistam, hoje acontece uma profissionalização do Terceiro Setor, mas a senhora ainda acha que há uma diferença de linguagem e expectativas diferentes?

Eu acredito que o perfil assistencialista no Brasil não está mudado como deveria, ainda. Temos muito caminho a percorrer. Nesse ponto, eu vejo como o Geraldo foi pioneiro no Projeto Pescar, porque o “não dar o peixe, ensinar a pescar” era também uma filosofia pessoal dele. Existem formas de assistir e libertar. Hoje, temos uma média de 12 excedentes por vaga do Projeto Pescar em todo o Brasil. Esse número é muito grande – para onde estes jovens, que têm vontade de aprender, vão? Que chance eles vão ter no mercado de trabalho? Muita coisa aconteceu no Brasil e no mundo desde o início do Projeto Pescar, e o que houve foi uma mudança de atores no Terceiro Setor, mas ainda existe, sim, este perfil assistencialista. O grande segredo para mudar isso é olhar para as pessoas que são atingidas pelos projetos como um todo, aumentar sua autoestima, dar-lhe ferramentas para trabalhar e buscar um espaço ao sol.

Quais as dificuldades enfrentadas ao trabalhar diretamente com jovens oriundos de diferentes realidades sociais?

Toda vez que iniciamos uma nova turma do Projeto Pescar, pedimos que eles peguem um pedaço de papel e escrevam três sonhos que desejam realizar. E o interessante é que, apesar de muitos destes jovens não terem uma estrutura de família formal, seus sonhos são muito parecidos com jovens de qualquer classe social: a maioria quer ter uma casa própria, ter um carro e ter algum dinheiro para ajudar os pais. E esse conceito de “ter uma casa” é mais amplo: eles querem a construção afetiva, o desejo de ter uma família. O carro expressa a vontade de mobilidade, de independência. Acredito que todos os jovens, hoje, estão com dificuldades cada vez maiores de sair do “casulo”, apenas com situações sociais diferentes. O que procuramos no Projeto Pescar é dar oportunidades para que os aprendizes cresçam, sejam vistos com dignidade e respeito dentro das empresas onde participam do projeto e percebam que, sim, existem chances para eles. E esse “estar dentro da empresa” é muito interessante porque gera neles um aumento de autoestima muito grande – este é um mundo do qual eles sentem muita vontade de fazer parte, então eles se sentem alegres por poder estar ali e o respeito é mútuo, natural.

Projeto Pescar na Sulfato Riogrande. Imagem: arquivo Projeto Pescar
Projeto Pescar na Sulfato Riogrande.
Imagem: arquivo Projeto Pescar

A Rede Pescar é composta hoje por 120 Unidades, distribuídas nos estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Mato Grosso do Sul, Rio Grande do Norte, Ceará, Pernambuco, Bahia e Brasília (DF). Conta também com 19 Unidades na Argentina e uma no Paraguai. Como começou este trabalho de redes? E como elas são gerenciadas?

A qualidade do repasse da Tecnologia Social Pescar às companhias é pauta constante das agendas da equipe da Fundação, que resultou em um levantamento importante. Os resultados foram o mapeamento das competências organizacionais, o detalhamento do perfil e competências do facilitador, o aperfeiçoamento das etapas de seleção do orientador, e também a elaboração de um instrumento de avaliação por competências do Orientador. Este trabalho torna mais eficaz a percepção de conhecimentos, habilidades e atitudes no processo de avaliação e desenvolvimento conjunto do Plano de Desenvolvimento Individual destes atores da Rede Pescar. Feita esta primeira triagem, o acompanhamento é presencial e também acontece à distância. O Programa de Acompanhamento Pescar incentiva o registro de boas práticas e a discussão de experiências – ao vivo, por telefone ou virtualmente. Nossa gestão está sempre aberta para melhorias e esse método de gerenciamento, com a ajuda de facilitadores e orientadores, tem se mostrado muito eficiente. E as horas de treinamento para estas pessoas aumentam muito a cada ano – em 2008, foram 15 horas. Em 2009, este número saltou para 45h30min. Os facilitadores da Região Sul participam presencialmente – e os demais, virtualmente – de um treinamento psicossocial que promove a constante análise e diálogo dos envolvidos no Pescar.

A Fundação Projeto Pescar é referência em todo o país e já ganhou diversos prêmios importantes. Qual a receita para uma organização não-governamental dar certo e render frutos e prêmios?

Acredito que é saber usar a tecnologia social que está disponível hoje em dia, que veio para nos ajudar a sermos mais e mais capazes. Outra coisa importante, pelo menos para a Fundação Projeto Pescar, é uma gestão muito bem controlada, também no que diz respeito a finanças – é preciso ter uma Fundação saudável, que não gere prejuízos e mantenha-se equilibrada. Além disso, o foco em metas, indicadores e prestação de contas é muito importante – afinal, as empresas parceiras também têm que reportar estes resultados e mostrar que a Fundação desenvolve um trabalho sério e que realmente faz a diferença.

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