Patrícia Fagundes é diretora da Cia Rústica de Teatro e professora de direção teatral no Departamento de Arte Dramática da UFRGS. Doutora em Humanidades pela Universidad Carlos III de Madrid, onde desenvolveu a tese intitulada A Ética da Festividade na Criação Cênica. Mestre em Direção Teatral pela Middlesex University de Londres, desenvolvendo dissertação sobre Shakespeare. Paralelo a atividade acadêmica, Patrícia Fagundes sempre manteve intensa atividade profissional, dirigindo e produzindo vários espetáculos, performances e eventos, entre eles: Clube do Fracasso (2010 – Indicação ao Açorianos de Melhor Direção, Espetáculo, Dramaturgia e Produção- Prêmio de Melhor Dramaturgia e Melhor Espetáculo pelo Júri Popular), Desvios em Trânsito (intervenção urbana – 2010), A Megera Domada (2008 – Indicação ao Açorianos de Melhor Direção, Espetáculo e Produção – Prêmio Açorianos e Braskem de Melhor Ator e Melhor Atriz), Sonho de Uma Noite de Verão (2006- Prêmio Açorianos, Quero-Quero e Braskem de Melhor Direção, Espetáculo e Trilha Sonora), Macbeth (2004 – Indicação ao Açorianos de Melhor Direção e Produção), Pandolfo (2005 – Indicação ao Tibicuera de Melhor Direção e Espetáculo), O Beijo no Asfalto (1998 – Indicação ao Açorianos de Melhor Direção e Espetáculo, Prêmio de Melhor Produção), O Bandido e o Cantador (1996 – Indicação ao Açorianos de Melhor Direção), O Jantar (1995), Até Segunda Ordem (1993).
Teatro não é o trabalho de um só indivíduo, mas é no diretor que recai a responsabilidade maior. Você escolheu essa função? Conte-nos um pouco da sua história.
Não sei se é exatamente a maior responsabilidade, acho que se tratam mais de diferenças. Nessa máquina coletiva que é o teatro, todos tem responsabilidades muito importantes, ainda que diferentes, e no final a relação ator-espectador é o núcleo fundamental, a célula básica, sem a qual o teatro não existe. Ou seja, a responsabilidade do ator é imensa, provocando desastres cênicos quando não assumida.
Mesmo consciente de que a figura do diretor é dispensável para que o teatro exista, acho que sempre quis ser diretora, desde o princípio. Fiz meu primeiro curso de teatro as 13 anos, durava oito meses e concluía com uma montagem. Foi uma experiência intensa, de vida e de criação – essas dimensões estão sempre se atravessando na minha história, o teatro sempre se definiu como experiência, como espaço de encontro, como microterritório social. Quando entrei no DAD, com 18 anos, planejava fazer o curso de Interpretação, aprender bastante e só depois de uns 10 anos começar a dirigir, porque eu pensava (e continuo pensando) que um diretor necessita de um arquivo amplo e profundo de experiências, conhecimento, técnicas, referências, histórias, memórias.
Meyerhold dizia que a encenação é a especialização mais ampla do mundo, justamente por essa necessidade de beber de muitas fontes: música, dança, arquitetura, literatura, artes visuais, ciência, cotidiano, vida. Mas não resisti, e acabei trocando a ênfase do curso de Interpretação para Direção Teatral. Eu gostava de atuar, mas tinha mais vontade de dirigir; tenho uma relação super intensa e apaixonada com meu ofício.
Sinto-me em um processo contínuo de aprendizagem e descoberta, e se um dia perder essa sensação, melhor parar. A atividade pedagógica está também para mim muito relacionada com esse fluxo, dar aulas é colocar-se em movimento de descoberta, de relação com o outro (como dirigir). Nesse ano começo a trabalhar como professora permanente de direção no DAD (já trabalhei três anos como professora substituta). Um começo importante, que abre uma trajetória, e ao mesmo tempo dá continuidade a essa troca que sempre tentei desenvolver entre teoria e prática, academia e produção artística, ser professora e diretora: relações amorosas.
Você apresentou Shakespeare de uma maneira não convencional, e que funcionou bastante se pensarmos nos sucessos de bilheteria e crítica. As pessoas aceitam bem essa reformulação da história original ou ainda relutam pelo clássico? O que você foi percebendo do retorno da platéia ao longo dessas adaptações?
Na real, em nenhuma das peças do projeto Shakespeare houve uma reformulação significativa da história original. A história estava lá, como no texto. Mas um texto é só um ponto de partida, um roteiro, um material. A questão é como contar (ou não contar) a história. E se Shakespeare não era um artista burocrático ou certinho, a infidelidade seria ser careta e protocolar na recriação de seus textos.
As três montagens foram apresentadas em locais muito diferentes, para públicos bem diferentes, desde o conforto do Theatro São Pedro até a precariedade do salão de um albergue municipal (onde aconteceu a apresentação mais emocionante de Macbeth, em minha opinião). Fizemos ensaios abertos para alunos de escolas públicos, grupos de terceira idade, presidiárias em regime semi-aberto, apresentamos no interior do estado, na Bahia, em Montevidéu, para gente da classe teatral, para gente que nunca vai ao teatro. Na diversidade dessas experiências, percebemos que o público menos “convencional”, que não está condicionado por determinados pré-conceitos e expectativas de como deve ser teatro ou como deve ser Shakespeare, é aberto e disponível, perceptivo e ligado. As pessoas vivem em um mundo que não é nada clássico, estão acostumadas a linguagem da tv, do cinema, do vídeo, da cultura pop… Quem ainda reluta pelo “clássico”, enquanto forma rígida? Estamos na época das recriações, apropriações, trânsitos entre tradição e inovação…
Como evoluiu a experiência em Macbeth, Sonho, e Megera?
Cada montagem foi uma vivência diferente, não sei identificar bem uma “evolução” – ou melhor, não sei identificar evolução segundo uma perspectiva linear. Tenho a sensação que os processos criativos funcionam em ciclos, existem perguntas que te movem, e você encontra respostas que parecem mais ou menos satisfatórias a cada processo. No projeto Shakespeare, perguntávamos: como aprender de um clássico, de algo que é parte da tradição do teatro? Que memória, que formas estão latentes em um tipo de teatro que era popular e profundo, cômico e trágico, inovador e conservador, rústico e sofisticado, tudo ao mesmo tempo? O que nos contam esses fósseis que são os textos? Como estabelecer conexões reais entre a equipe, com o público, com o mundo? E claro, investigamos várias questões específicas de linguagem: a palavra viva na cena, como ação, o corpo como história, a música, o espaço vazio, o movimento, a relação com o espectador. Cada texto propôs seus próprios desafios, atmosferas, universos, dificuldades. E cada equipe teve sua própria química, problemas, delícias, conflitos.
Esse é um trabalho solitário, ou os atores estão envolvidos em todos os processos da montagem?
Penso que o ideal é que os atores se envolvam o máximo possível em cada processo, mas claro que existem traços específicos de cada função. Uma das particularidades da função do diretor é que geralmente só existe um diretor em cada equipe, então sim, há certa dimensão solitária no ofício. (Aliás, há muito tenho vontade de exercícios de compartilhar a direção… Projetos a inventar, tenho vontade de tanta coisa). Mas, ao mesmo tempo em que a direção tem esse caráter solitário, é uma função que depende todo o tempo de conexões, de relações – com os atores, com o cenógrafo, o iluminador, o músico, o autor, os materiais, o espaço, o tempo. O diretor não só se relaciona intimamente com cada um desses componentes como necessita fomentar relações entre todos eles, entre as palavras e as coisas, os corpos e as idéias, os sons e as imagens. Essas relações não precisam ser necessariamente harmônicas, podem ser dissonantes, mas precisam existir, são necessários fluxos, trocas, encontros.
Foi uma escolha “parar” com Shakespeare e explorar outras histórias?
Trata-se mais de uma pausa que de uma parada. Shakespeare é um arquivo que continua aberto, penso em voltar a ele. Agora é o momento de outras viagens, outras paisagens, mas Shakespeare continua sendo parte do mapa. Na minha profusão de desejos, tenho vontade de montar Conto de Inverno, As you like it, Ricardo III… Tenho vontade de outros autores também.
De onde surgiu a ideia do Clube do Fracasso?
Acho que o gérmen da coisa está em um texto que escrevi um dia em que me sentia um lixo. Era uma lista de fracassos pessoais, que acabou virando texto da peça, também terminava com essa frase, “agora que eu já fracassei em quase tudo, posso dançar”. Me interessa mais o erro que o acerto. Acho perigoso esse discurso repetido que aplaude a superioridade, a vitória, o sucesso, o correto. Beleza padronizada, cartões de crédito gold, comedimento, sexo sob receita, toda essa coisa. Me interessa mais o que está por fora, nas margens, o torto, o imperfeito. “Somos todos bastantes ridículos, mas talvez na imperfeição resida nossa salvação”…
A peça foi apresentada num estúdio de fotografia. Já havia a intenção de se apropriar de lugares diferentes de um palco de teatro?
Eu preferiria não fazer teatro em teatros. A estrutura fixa dos teatros é um convite a formalidade e ao “bom comportamento”. Eu imagino, percebo, desejo o teatro como festa, como linha de fuga, como encontro, como desvio. Então parecem mais férteis os espaços mais flexíveis, transformáveis, abertos a diálogos. O problema em fazer teatro fora dos teatros está na logística, produzir um espaço custa caro.
O Clube retornará ou bola pra frente?
Claro que sim! Estamos armando uma nova temporada para junho, em Porto Alegre. Em abril apresentaremos em várias cidades do interior do estado, pelo SESC. E estamos articulando mais histórias, queremos continuar apresentando o Clube por muito tempo, a troca com o público foi muito bonita, especial, queremos continuar trocando! A peça voltará com algumas mudanças, a criação continua em processo.
Essa montagem faz parte de uma trilogia, correto? Você já pode nos adiantar o que vem por aí?
A Trilogia Festiva dá continuidade a essa investigação de uma linguagem e de uma forma de trabalho estruturadas sobre o que chamamos de ética da festividade na criação cênica. (Este é também o título da minha tese de doutorado). Uma ética do encontro e da diversidade, que celebra o corpóreo, o prazer e o próximo, aceitando o caos e a turbulência como parte de uma existência complexa e multidimensional. Desde tal perspectiva, ética e estética não são forças opostas, e sim indissociáveis. Todo procedimento e poética artística nasce de um conjunto de opções que implica uma relação particular com o mundo e com o outro: opções éticas.
É importante observar que essa noção de festividade reconhece a dolorosa dificuldade de conviver com o outro, de negociar com a diferença e com a sombra: não se trata de uma tentativa de evasão, e sim do desafio de celebrar o prazer na relação com o mundo, a capacidade de dançar no caos. O prazer como vetor de resistência que cria linhas de fuga; a festa como forma de reinventar o mundo. Por isso a Trilogia se aventura nessas zonas obscuras – fracasso, morte, caos. A ideia é montar, depois do Clube do Fracasso, 21 Maneiras de Encontrar a Morte e Caóticas. Todos partem de um roteiro aberto desenvolvido em sala de ensaio, criando uma dramaturgia que se faz da composição de fragmentos, relatos, sensações, experiências partilhadas e também de conceitos e referências teóricas.
A próxima montagem será 21 maneiras de encontrar a morte. Já estamos aquecendo as ideias, escrevendo projetos, buscando referências, reunindo material.
E a pergunta que nunca cala: Como continuar fazendo teatro com todas as dificuldades do percurso?
Porque tem o prazer também. É uma festa, entendendo a festa como uma forma de negociar com a morte e de se relacionar com o outro, com o tempo, com as tramas sensíveis da vida, com o invisível e com a carne.