A Redecriar é uma ONG porto-alegrense fundada em 2005, que derivou de um grupo de estudos formado por profissionais do Serviço Social, Biologia e Nutrição. Os estudos levaram à elaboração e implementação do projeto “Reciclando a Cidadania em Rede Interdisciplinar” e à constituição da ONG. Exemplo de trabalho árduo em equipe, organização e planejamento, a Redecriar já recebeu diversos prêmios importantes, como o “Valores do Brasil”, prêmio nacional concedido às organizações não-governamentais que se destacam no país, e também o Prêmio Responsabilidade Ambiental, promovido pelo governo do Rio Grande do Sul. Confira uma entrevista com a presidente da ONG, Marilize Pacheco Alves.
Como começou a ONG Rede Criar? Desde quando ela existe, e como surgiu a ideia inicial?
A nossa ideia inicial foi formar um grupo de estudos, éramos um grupo de cinco pessoas recém-formadas em Assistência Social pela PUC/RS. Queríamos analisar as possibilidades do mercado de trabalho, verificar em que área poderíamos atuar e realmente fazer a diferença. Duas biólogas entraram no grupo e decidimos que nossa área de atuação seria a sustentabilidade ambiental, a criação de um ambiente de desenvolvimento sustentável. A partir daí, elaboramos um projeto piloto chamado “Reciclando a Cidadania em Rede Interdisciplinar”, nosso ponto de partida.
A gestora de projetos da Redecriar, Andréa Foresti, foi convidada a auxiliar uma aluna da Escola Estadual Ibá Ilha Moreira, que fica na Zona Leste de Porto Alegre. Ali, viu uma oportunidade de mostrar nosso projeto para a diretora da escola, que o adotou e nos deixou ministrar oficinas para alunos de quatro turmas, e também capacitar os professores para que fossem multiplicadores daqueles conceitos. Durante seis meses, desenvolvemos nosso projeto piloto nesta escola e ele foi indicado para a Secretaria Estadual de Educação para ser implantado em 236 escolas. Mas não havia verba. A partir disso, percebemos que precisávamos constituir uma ONG para captar recursos – ou seja, a Redecriar surgiu a partir desta demanda, e fomos adiante.
Quantas pessoas trabalham na ONG atualmente?
Hoje, temos 19 profissionais trabalhando diretamente na ONG. Das fundadoras, três continuam – eu, a Andréa e a Simone Barros de Oliveira, todas assistentes sociais, e uma bióloga, a Andreza Selbach Faria. A equipe da Redecriar é multidisciplinar: temos assistentes sociais, biólogos, nutricionistas, psicólogos, médicos, pedagogos, além de consultores em assuntos específicos – casos de violência contra a criança, por exemplo. Hoje, contamos também com o pessoal de Comunicação – uma fotógrafa, um publicitário que nos ajuda na captação de recursos e várias parcerias indiretas, como o pessoal do curso de Design da Uniritter, por exemplo.
Que tipo de profissional, na sua opinião, é fundamental para o bom funcionamento de qualquer ONG?
Posso estar “puxando a brasa para o meu assado”, mas acredito que é imprescindível o trabalho da assistente social, por se tratar de uma pessoa capacitada para trabalhar com isso, elaborar projetos consistentes, baseados em fundamentos teóricos, bem planejados e organizados. A base de uma ONG que dá certo são seus bons projetos, eles são a espinha dorsal de uma ONG que queira buscar parcerias e fazer diferente, deixar sua marca em uma comunidade, na sociedade. Além disso, um assistente social está preparado para lidar com as diferenças de cada comunidade: na forma de lidar com as pessoas inseridas nela, com os líderes informais e formais de cada uma delas, com os alunos de diferentes idades e inseridos em diferentes realidades sociais.
Qual o ponto de partida para criar uma ONG? Qual a burocracia que precisa ser enfrentada?
No caso da Redecriar, não tínhamos ideia da quantidade de burocracia que seria enfrentada. O primeiro passo foi reunir pessoas realmente interessadas em desenvolver um trabalho sério e constituir os Conselhos Diretor e Fiscal. Também é necessário montar um Estatuto, um Termo de Abertura, fazer uma Ata de Fundação e, a partir daí, partir para a eleição destes Conselhos que fundamentam uma ONG. Depois da eleição e aprovação do Estatuto, é necessária a contratação de um contador para auxiliar nos trâmites burocráticos – abertura do CNPJ, registros em cartório. Depois, é necessário o encaminhamento de registros junto aos Conselhos Nacional e Regional de Assistência Social, também ao Conselho Municipal da Criança e do Adolescente. Estes registros só podem ser obtidos depois que uma ONG completa três anos de existência e, por isso, representaram uma grande conquista para nós. Em 2009, conseguimos nos cadastrar na Rede Parceria Social, promovida pela Secretaria de Justiça e do Desenvolvimento Social do Estado do Rio Grande do Sul, o que possibilitou o desenvolvimento de dois grandes projetos neste ano.
E a captação de recursos, de que maneira é feita? Quais os obstáculos mais encontrados neste aspecto para gerenciar uma ONG?
Este é um problema que é bastante comum em ONGs. Primeiro, estamos sempre de olho nos Editais lançados anualmente por empresas que podem ser possíveis apoiadoras, projetos desenvolvidos pelo governo, pelo município. Para a Redecriar, é imprescindível que a captação de recursos busque parcerias com empresas que entendam nossa missão e nossa visão. Temos como Visão tornar-se uma fonte de referência pública de alta credibilidade em educação sustentável e, como Missão, investir no enfrentamento à questão social expressa no extermínio do ambiente, realizando ações que contemplem os pressupostos do desenvolvimento sustentável. Geralmente, os assistentes sociais não são capacitados na graduação para aprenderem a captar recursos, por isso acredito que o principal problema ainda é ser recebido nas empresas, ter a chance de ser ouvido. Em 2010, depois de termos projetos reconhecidos e sermos uma ONG mais estabelecida, conseguimos contratar um profissional da área de Marketing para nos ajudar com o contato com as empresas. Acredito que o principal obstáculo é conseguirmos expor nossos projetos às empresas, mas, à medida que a Redecriar foi sendo estabelecida numa base forte e reconhecida com prêmios, as coisas foram ficando mais fáceis. Acredito que essa é uma regra que funciona com a maioria das ONGs.
Você vê alguma mudança no perfil assistencialista histórico no Brasil? Há uma expectativa das pessoas de que as empresas invistam, mas ainda não há uma profissionalização do Terceiro Setor, criando uma diferença de linguagem e expectativas diferentes…
Sim, essa mudança está bem fundamentada. Acredito que o modelo assistencialista está defasado, ninguém mais quer “dar” apenas, as empresas querem ensinar a “pescar o peixe”. Mas ainda há um longo caminho a ser percorrido, que é o de não apenas “ensinar a pescar”, e sim dar ferramentas para que as pessoas consigam fazer isso por si mesmas e para que os projetos tenham seguimento mesmo após sua conclusão. Essa ferramenta é a capacitação e o incentivo para que as pessoas ajam como multiplicadores dentro de uma comunidade, de uma escola, de uma associação de moradores. O conceito é mais amplo. Por isso, as ONGs precisam, sim, profissionalizar-se cada vez mais porque já há uma dificuldade em quantificar os resultados, mostrá-los em números, e por isso é imprescindível esta profissionalização, esta qualificação. Da parte das empresas, hoje, há um entendimento melhor, com pessoas contratadas para cuidar especificamente de projetos sociais, culturais e ambientais, mas é claro que a diferença de linguagens ainda existe. Há um longo caminho a percorrer para que estas duas iniciativas andem juntas em harmonia.
Qual o método utilizado pela Redecriar?
A Redecriar busca, desde o princípio, aplicar o conceito de sustentabilidade através do trabalho em redes sociais. Enfatizamos a questão ambiental nas intervenções realizadas com estudantes; a questão social com os professores e a questão socioeconômica com a comunidade local. A questão cultural permeia todas as ações à medida que envolve o público beneficiado na definição dos objetivos a serem alcançados nas localidades. Buscamos sempre implementar projetos em comunidades que possam ser atingidas como um todo, criando redes e tentando transformar aquela realidade social em algo melhor para a comunidade que nela está inserida através da capacitação e empoderamento.
Existem métodos específicos para cada projeto? Como eles são criados e desenvolvidos?
Cada projeto é cuidadosamente planejado. Primeiro, fazemos toda uma pesquisa socioambiental e cultural sobre as comunidades onde queremos trabalhar. Nos projetos, aplicamos um ciclo contínuo de ações: planejar, organizar, dirigir e controlar. Estes ciclos podem ser reiniciados a qualquer momento, sempre com o objetivo de atingir as metas iniciais do projeto.
Conte mais sobre o projeto “Reciclando a Cidadania em Rede Interdisciplinar”.
Este projeto iniciou em 2006, quando estabelecemos nossa primeira parceria com a iniciativa privada, o que nos possibilitou levar conceitos de educação socioambiental à Escola Estadual Gema Belia e implementar ações geradoras de renda na Comunidade Colina do Prado, localizados no Bairro Jardim Carvalho.
Em 2007, em parceria com o Instituto Gerdau, desenvolvemos o mesmo projeto na Escola Estadual Olegário Mariano e na Escola Estadual Marechal Floriano Peixoto, atendendo aproximadamente 300 jovens e 50 educadores.
Iniciamos também este projeto na Associação de Ilhéus de Porto Alegre, na Ilha das Flores, onde um grupo de moradoras aprendeu a reaproveitar plásticos de garrafa PET para confecção de colares e chaveiros em parceria com os meninos da Fundação de Atendimento Sócio-Educativo – FASE, em Novo Hamburgo, que montavam os colares. Aprendemos esta técnica de trabalho artesanal com a artista Val Ribeiro. Esta técnica é pautada no conceito ecológico dos 3Rs (Reduzir, Reaproveitar e Reciclar), com foco especial no segundo R: reaproveitamento de embalagens plásticas.
Em 2008, este projeto foi premiado pelo Banco do Brasil na categoria Meio Ambiente no âmbito Nacional – Casos e Experimentos Reais do prêmio Valores do Brasil. Isso nos deu fôlego para seguirmos com ele e, em seguida, recebemos o apoio da Rede Parceria Social para implementar a montagem completa dos produtos na Ilha das Flores. Beneficiamos diretamente 25 mulheres, e indiretamente, as famílias e a comunidade do local. O projeto transformou-se, então, no “Redecriando Flores na Ilha” e durou todo o ano de 2009 com resultados fantásticos. Hoje, são confeccionados colares de diferentes modelos, chaveiros, flores decorativas e o que mais a imaginação das alunas mandar. Estas mulheres desenvolveram um senso de propriedade incrível, abraçaram a oportunidade gerada pelo projeto e, hoje, andam com as próprias pernas. Uma delas nos disse, no início de 2009: “eu nunca imaginei que, de lixo encontrado no rio (Guaíba), eu poderia fazer uma coisa tão linda”. Acho que essa frase resume tudo: o conceito de reaproveitamento e a técnica que elas não sabiam, e o aumento de autoestima e despertar do empreendedorismo criado pelo projeto.
Como foi trabalhar com a Rede Parceria Social em 2009?
Para a ONG, representou um grande aprendizado. Além de nos proporcionar recursos para realizarmos nosso projeto, aprendemos bastante sobre prestação de contas. Costumamos dizer que estamos virando uma empresa, porque aprendemos muito com o modelo de gestão adotado pela Rede Parceria Social e conseguimos conciliar isso com nossa Missão e Visão, o que torna o aprendizado mais rico ainda, mostrando que é passível de aplicação no dia-a-dia de uma ONG. A Rede Parceria Social fortaleceu nossa percepção de que uma ONG precisa sempre estar se qualificando para participar de iniciativas como essa. Além disso, tivemos atenção especial de algumas empresas como a Dana, que esteve presente realizando visitas ao projeto, acompanhando seu progresso, entrevistando e fotografando os alunos, publicando matérias, o que contribuiu muito para o projeto Nutrivida. Isso significou um grande aumento na autoestima daqueles jovens da Vila Orfanotrófio atingidos pelo projeto.
Relate sobre a experiência do projeto “Nutrivida”, que aconteceu na Vila Orfanotrófio. O objetivo foi atendido?
A experiência foi muito enriquecedora. O “Nutrivida” foi um dos nossos projetos de maior sucesso, qualitativamente e quantitativamente. Nosso objetivo era difundir conceitos de uma alimentação mais saudável. A partir de nossa pesquisa naquela comunidade da Vila Orfanotrófio, verificamos que uma fruta muito consumida na creche da associação de moradores era a banana. A padaria onde os jovens foram capacitados e trabalhavam ficava nesta Associação e, a partir disso, a nutricionista sugeriu o bolinho de banana como produto da padaria. O produto foi chamado de “Orfolinho”, e um dos alunos criou o logotipo usado nas embalagens.
A mudança que observamos neles, conforme o projeto ia acontecendo, foi impressionante. Participamos de seus encontros semanais e vimos o despertar de uma consciência socioambiental muito interessante. Os alunos tornaram-se multiplicadores naquela comunidade e, inclusive, por iniciativa própria, participaram de uma gincana numa escola local para ensinar como se faz a reciclagem de lixo para as crianças que estudam lá. Conceitos com os quais eles foram familiarizados no começo das oficinas.
Observamos também o surgimento do empreendedorismo e o aprendizado importante de trabalhar em grupo. No início do projeto, estes adolescentes eram muito tímidos e sequer olhavam direto para nós. No final de 2009, alguns retornaram para a escola, outros estão trabalhando e eles mesmos criam iniciativas para ajudar uns aos outros. As encomendas de Orfolinho eram tantas na época do Natal que eles passavam o turno inteiro na padaria, todos os dias. E aprenderam a negociar parcerias com locais de venda, gerenciar encomendas… Nossa ideia é, agora, abrir uma parceria com o SENAE para que eles possam fazer um curso de capacitação em gestão, para que o projeto continue sempre e cada vez melhor. A situação alcançada ao final do projeto foi até além do nosso objetivo inicial, a turma é muito coesa, unida e batalhadora.
Como é trabalhar com públicos tão diferentes, como adolescentes, membros de associações de moradores, crianças e mulheres que vivem nas Ilhas de Porto Alegre?
Isso vem da aplicação de conceitos aprendidos no curso de assistente social e, principalmente, nos dois anos de estágio curricular, aplicando os conhecimentos na prática. Mesmo assim, esse é um eterno aprendizado, porque cada comunidade tem suas peculiaridades, seu modo de conversar, sua maneira de viver. Com os jovens da Vila Orfanotrófio, por exemplo, criamos até um dicionário de gírias próprias deles e da comunidade, para facilitar nossa comunicação e enriquecer o projeto. O princípio básico é ter essa flexibilidade e saber como lidar com os diferentes grupos de pessoas oriundos de diferentes comunidades. Por isso, fazemos sempre relatórios internos de avaliação na Redecriar, para crescermos e aprendermos sempre juntos.
Quais os projetos da Redecriar previstos para 2010?
A Redecriar teve um projeto selecionado no “Criança Esperança” de 2010, que será desenvolvido na Vila Orfanotrófio com os mesmos alunos que frequentaram o projeto “Nutrivida”. Eles agirão como multiplicadores dentro das duas escolas da comunidade e também na creche da associação de moradores onde foi montada a nossa padaria. Os professores das escolas também receberão capacitação, para que atuem como multiplicadores, já que são uma base importante para a comunidade e estão sempre em contato com as crianças e adolescentes. Haverá aulas de informática, judô, street dance, horta e compostagem, coleta seletiva e reaproveitamento integral de alimentos. Estamos planejando e estruturando nossas ações cuidadosamente para este projeto, que inicia em março. Inscrevemos projetos na Rede Parceria Social, esperamos dar continuidade aos projetos que fizemos em 2009, mas ainda estamos aguardando uma resposta do governo do RS em relação aos projetos selecionados.
A Rede Criar ganhou diversos prêmios importantes, como o “Valores do Brasil”, por exemplo. Qual a receita para uma organização não-governamental dar certo e render frutos e prêmios, como no caso da Redecriar?
Pode parecer um clichê, mas neste caso se aplica muito bem à realidade: o trabalho em equipe, a união, a harmonia. É saber administrar as capacidades e talentos de cada pessoa que trabalha na ONG, respeitar e fazer bom uso disso.
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