Skip to content
Trabalho com o traço característico do street artist Dingos. Imagem: Divulgação

Gilmar Del Barco Junior, 36 anos, mais conhecido como Dingos, mora em Osasco (SP), e é ali que ele transforma sua street art em ações sociais. Produtor cultural, integrante da banda de rap LA M.I.T.A, ele também está em dois grupos de grafite, FC e KUC. Com fôlego de sobra, ele ainda é arte educador da ONG Associação Eremim, Fundação Gol de Letra e idealizador de vários projetos. Dingos participa de diversos projetos onde subverte os preconceitos da arte de rua – ele é o nosso Banksy que dá a cara a bater, e denuncia não no traço, mas na atitude.

Como pintou a história de levar a arte a sério?

No início da minha atuação artística, ou na prática da pichação, eu não possuía o conhecimento e muito menos a ideia de levar a sério a arte. Eu não sabia o que era arte, ou até mesmo o que era grafite, quando iniciei a escrita nos muros do bairro onde eu morava (Jardim Piratininga, em Osasco). Logo senti um desejo de expressar, protestar, transgredir as barreiras da desigualdade social que há em nosso país, simplesmente eu queria escrever meu nome, minha marca… Escrever e correr. E assim nasceu a minha relação com a rua. Em 1989, eu simplesmente queria escrever meu nome no muro, e depois eu ficava admirando a minha arte. Por causa disso, eu ‘rodava’, aí surgia a punição, tanto da população como da polícia. Era tenso, eu muitas vezes tinha que pintar ou limpar as paredes.

Nessa época, eu não imaginava e nem queria levar a sério a arte. Eu repeti de ano na Escola Estadual Walter Negrelli, e meu castigo foi ser obrigado a participar do 1° concurso de grafite. Aí surgiu a dúvida, “o que é grafite?”. Respondia para a diretora da escola dizendo que não poderia desenhar na parede, não sabia desenhar nada, mas não tive escolhas. Pelo contrário, tive que escrever, pesquisar, desenhar a respeito da seca do nordeste e depois apresentar uma visão sobre isso para o corpo docente da escola. Conquistei o primeiro lugar no concurso e dei uma entrevista para o jornal Diário de Osasco. Isso mudou minha vida, ou melhor, a vida do meu grupo de amigos, e assim conseguimos o nosso espaço, sem a pretensão de levar a sério a arte.

Em 1991, iniciamos oficinas de grafite, stêncil e fundamos a A.G.O.R. (Associação de Grafiteiros de Osasco e Região). Sem perceber fui levando a sério a arte, pesquisando, estudando e buscando respostas. Em 1997, decidi que iria sobreviver da minha arte, um estilo de vida, assim sobrevivo com minha correria diária, buscando a evolução do meu estilo, desenvolvi a percepção visual, entendi o processo da multiplicação do conhecimento e percebi que eu era referência para muitos adolescentes e jovens das cidades vizinhas a Osasco. Mas foi só em 2000 que realmente pintou a história de levar a arte a sério, descobri que eu era educador popular, um agente multiplicador, produtor cultural, que meu projeto de vida é levar a arte a sério custe o que custar. Comecei a coordenar o projeto Viva Cidade, que fomentou, propagou e estimulou o grafite nos quatros cantos de Osasco.

Imagem: Divulgação
Imagem: Divulgação

Você pensou em ganhar dinheiro com isso? E ganha?

No início pensei na sobrevivência e em poder ajudar a minha família. Eu não tinha a dimensão do poder da arte, na transformação que promove no indivíduo… É mágico, magnífico. Penso sempre em desenvolver o projeto, para ela simplesmente se desenvolver, multiplicar, fomentar e estimular a produção artística, a revolução humana, valorizar a vida em primeiro lugar, criar possibilidades tanto pra mim como para cena local… Depois penso no dinheiro. Não estou dizendo que não preciso do dinheiro, claro que precisamos, mas podemos viver em plena harmonia com o universo, com as pessoas, produzindo arte levando a sério. Hoje ministro oficinas na Fundação Gol de Letra e Associação Eremim, acordo todos os dias às 5h30min da manhã, estudo, desenvolvo metodologias educacionais… Para ser prático, trabalho em três projetos. Agora, ganho bem ministrando minhas oficinas, fora os bicos de final de semana ou quando sou convidado por empresas a desenvolver meu trabalho ou até mesmo alguns projetos artísticos. Nesse caso minha renda mensal aumenta, de acordo com a demanda. Trabalho de domingo a domingo, levo a sério, assim sou valorizado e respeitado.

Qual a sua concepção de protesto na arte?

Penso que podemos sim desenvolver uma concepção de protesto na nossa arte. A questão é: “como poderemos protestar através da arte?” Só protestar também não resolve, só chama a atenção. Temos que combater. Acredito na arte como forma de educação, como ferramenta de transformação do senso crítico, o estudo é o escudo, o grafite é nossa arma. A arte combate o preconceito, a desigualdade social e promove a possibilidade do poder realizar sonhos, a geração de renda através da economia solidária e a valorização da autoestima dos jovens. Estimular a ação positiva dentro dos bairros periféricos é o que poderá desenvolver a concepção do protesto artístico, acredito que a arte supera a guerra urbana, civil e humana. Luto pelo poder, não exatamente o poder como alguns políticos possuem, e sim pelo poder de realizar o meu estilo de vida e ter voz dentro dos debates, dos cenários políticos, inserindo a minha concepção de vida e a minha visão de mundo, defendendo políticas públicas para a juventude.

Acredito na ação diária, no projeto social, na arte socialista e na multiplicação do conhecimento. O protesto nasce daí.

Você atua não só no grafite, certo? Conta um pouco sobre seus trabalhos.

No inicio só pensava em pintar, pintar, pintar. Depois de algum tempo, e devido a minha necessidade de locomoção para participar de alguns eventos culturais, shows, exposições no centro de São Paulo, devido à carência cultural da minha cidade, comecei em 1991 a ministrar as oficinas de estêncil em escolas estaduais. Também realizei três pinturas decorativas em lojas no shopping de Barueri, então desenvolvi o lado comercial de vender, administrar e executar aerografia.

Em 2000, fui convidado a organizar eventos culturais nas periferias de Osasco, e ali aprendi a planejar, executar, negociar, realizar eventos de grande porte, trabalhando com a cultura hip-hop. Depois trabalhei em várias frentes artísticas, tive que aprender várias profissões no decorrer da minha caminhada cultural, a maioria deles em Osasco: oficinas de grafite, produções culturais… Sou o curador da Exposição de shapes customizados por artistas de renome internacionais e nacionais, uma integração da nova e velha escola. Iniciei o projeto com quatro artistas e hoje cheguei a marca de 70!

Junto com o Leandro Pó, criamos a gravadora urbana, a The Real Family Records, e realizaremos oficinas de produção musical, produções de rap com a ferramenta de software livre e promovemos o baixo custo na produção. Estamos desenvolvendo o projeto da criação do nosso estúdio, pesquisando um kit acessível para um jovem da periferia. Temos também um grupo de rap latino, o LA M.I.T.A, onde executo a live painting durante as apresentações musicais.

Atualmente sou um autônomo da educação popular, presto serviços, sou um micro empreendedor. Tenho muitas profissões, penso que devemos sempre estar um passo a frente e preparados para o combate. Vivo criando, executando meus sonhos, e atualmente meu grande sonho é construir um centro cultural no Bairro do Jardim Rochdalle, que fica em Osasco.

Imagem: Divulgação
Imagem: Divulgação

O que vale mais: uma exposição ou intervenção?

As duas ações são importantes. No meu entendimento, é importante expor minhas criaturas, meu “filhos”, meus pensamentos, ou até mesmo simplesmente participar de uma exposição coletiva. A exposição coletiva é a maneira que encontrei para juntar pessoas com o mesmo estilo de vida, mas com visões diferentes, e devido a diversidade nos estilos, conseguimos criar um novo, tudo é válido. Já a intervenção, é uma ferramenta positiva que dialoga com a sociedade, transgredindo as barreiras da carência das grandes periferias do nosso Brasil e interage com o espaço. São fantásticas as duas ações, hoje há muita informação, muitas possibilidades de executar arte, informe-se, comunique-se! E faça arte.

O coletivo Fuck City atua desde 2001. Você ainda trabalha diretamente com o grupo?

Falar do coletivo Fuck City é surpreendente. Esse coletivo nasceu devido à briga que tivemos com a administração da nossa cidade. Não concordávamos com várias situações impostas pelos nossos governantes, para os quais eu trabalhei. Nunca ficamos com os braços cruzados, sempre lutamos pelos nossos direitos, o DEM 2 e eu criamos o coletivo com o propósito de chocar a sociedade – começando pelo nome, Fuck City. Depois da criação, recrutamos os soldados urbanos, iniciamos nossas ações.

Eu comparo o amor que temos pela Fuck Citu com o amor, por exemplo, que os Gaviões da Fiel tem pelo seu time. Admiro o amor dessa torcida, nós somos basicamente assim, temos um grande amor pela FC, somos um coletivo de amigos, familiares, agimos em família, almoçamos juntos, dividimos nossas emoções, decepções e alegrias além dos muros, respeito total, e sempre exercemos a cidadania. Somos agentes culturais, denunciamos através do grafite e cobramos do poder público soluções para questões de interesse público.

Mostramos pra todos que somos artistas, que estamos preocupados com a nossa cidade, com a juventude, enfim, só estamos tentado provocar a reflexão. Qual a sua sensação ou ação, por exemplo, quando você passa por um viaduto e vê um morador de rua, sem condição de moradia. Você não fica chocado? A propagação do crack choca você? Quando multiplicamos que pichadores são nossos inimigos isso me choca! Temos que ter a consciência que nossos inimigos são a fome, a miséria, a desigualdade social, a falta de moradia, a carência no ensino brasileiro, o salário de fome, a violência. Isso choca você? Então foi por esse motivo que criamos a Fuck City.

Seus projetos sociais se concentram apenas em Osasco?

No inicio só desenvolvia meus projetos em Osasco, no decorrer dos anos, fui expandindo para outras regiões de São Paulo e outros estados: Rio de Janeiro, Bahia e Espírito Santo.
Atualmente, desenvolvo o Projeto Cultura Urbana na Vila Albertina, Caxingui, Jardim Ester, Paraisópolis, Santana, Bosque da Saúde e Perus, e pretendo expandir a minha atuação em outros lugares de São Paulo, mas minha militância e meu foco é na minha cidade do coração, Osasco.

img_ptg_1_1_2688Como está a situação atual dos espaços para divulgar trabalhos?

A utilização das redes sociais facilitou a divulgação da nossa street art e abriu portas para novos artistas. Essas ferramentas abrigam e divulgam ações culturais, projetos e intervenções. O maravilhoso é que surge convite o tempo todo, via e-mail… Lembro muito bem na era sem internet, tínhamos que correr atrás para divulgar nossos trabalhos artísticos e, hoje, invadimos a mídia, galerias e grandes empresas, devido a essa ferramenta magnífica e dinâmica.

As parcerias com grandes marcas surgem a partir de concursos, ou os convites chegam como reconhecimento?

Nunca imaginei que poderia trabalhar em parceria com grandes empresas, mas no decorrer da evolução do meu trabalho, do meu conceito, ou até mesmo da minha visão de mundo e do comportamento social, recebo convites e automaticamente aceito. Adoro desafios!

Você acha que “vender” o trabalho para as marcas desmerece o esforço artístico?

Não, pelo contrário, estimula o crescimento pessoal e valorização da autoestima. Temos que ter conhecimento do que estamos fazendo. É um trabalho artístico utilizando as técnicas desenvolvidas nos muros, por isso não vejo problema algum no artista prestar um serviço para uma grande empresa, ou até mesmo vender seu sonhos e personagens, a uma galeria. Temos que ocupar todos espaços conquistados. Não é minha prioridade vender, expor meu trabalho – a minha meta é conseguir estabilizar minha vida profissional na área da educação, assim em breve estarei procurando as grandes empresas para uma parceria social, quero e preciso de um espaço físico para construção do espaço cultural Memorial Garagem Cultural. É o que eu penso, e aconselho a novos artistas. Busquem a valorização do seu trabalho, e se for possível venda seu trabalho, só assim poderemos sobreviver e se aposentar no futuro, use abuse do seu talento sem perder a raiz.

A arte liberta?

Arte liberta sim, com certeza, posso afirmar com toda certeza do mundo. A arte libertou e indicou um caminho de sucesso ao longo dos anos da minha singela vida. Na minha adolescência cometi alguns erros, não levava a sério a escola, minha vida ou até mesmo a minha família, vivia a vida sem rumo, sem expressão, sem perspectiva, não sabia o que seria da minha vida, conheci as drogas, o álcool e pratiquei vandalismo e até me envolvi em gangues para obter respeito ou até mesmo para defender minha integridade física, práticas que ficaram no passado. Quando comecei no grafite, minha vida se transformou para melhor, automaticamente fui buscando meu caminho, minha evolução, transformação e revolução humana.

Descobri que poderia conquistar o mundo caso eu planejasse ou desejasse essa conquista. Através da arte, descobri que sou um arte educador, que sou uma referência positiva para uma geração, que posso escrever minha própria história, que deixarei um legado, um exército de agentes multiplicadores. Sou um artista sem perder a humildade, o respeito ao próximo, sempre respeitando a rua e a história das pessoas que amo.

Estudei até a 8°série, devido a escola não ter um trabalho que estimulasse a minha permanência na rede de ensino, mas o grafite me mostrou o caminho da busca do conhecimento. Sei da minha missão, meu papel perante a sociedade. Tenho que resgatar os jovens, indicar, estimular o estudo, o crescimento profissional, quero muito libertar o máximo de jovens, já que muitos se tornaram escravos dos vícios, multiplicadores da violência que habita em nossas periferias. A arte libertará esses jovens também!

Veja mais: Fotos do trabalho de DingosGrafites de Dingos