Daniel Galera nasceu em São Paulo, mas viveu em Porto Alegre grande parte da vida. Fez parte do saudoso Cardosonline; é autor de quatro livros solo; foi um dos criadores do selo editorial Livros do Mal; já traduziu Irvine Welsh, John Cheever e Hunther Thompson; e teve textos adaptados para teatro e cinema. Sua última produção é uma Graphic Novel numa parceria promissora com Rafael Coutinho. Vamos falar sobre tudo isso.
Como você enxerga a relação dos escritores que ficaram conhecidos através da Internet? Você se considera incluso nessa “geração”?
Se podemos falar numa geração de autores que foi pioneira no uso da internet como espaço de publicação e divulgação de literatura, sim, com certeza faço parte dela. Mas é preciso deixar claro que esse recorte geracional tecnológico, cronológico e social não tem nada a ver com um projeto literário no sentido estético.
A grande inquietação da época era mesmo definir se “blog é literatura”?
Acho que era a grande inquietação de jornalistas culturais ingênuos ou sensacionalistas. Certamente não era a inquietação dos autores que usavam a rede como espaço de publicação. Creio que essa pergunta nunca passou pela cabeça de qualquer autor que usasse a internet e levasse a sério seu próprio trabalho. Um escritor não perde tempo pensando se o que está fazendo é literatura, ele escreve o que precisa escrever, do modo como pode escrever e, no caso dos bons, dando o melhor de si, e depois publica onde dá.
Qual sua opinião sobre o mundo dos blogs e a Internet das redes sociais?
Opinar sobre o mundo dos blogs seria como opinar sobre o mundo do telefone ou o mundo dos correios. Mas as redes sociais são um fenômeno diferente, que ultrapassa o mero status de ferramenta de publicação. Elas estão alterando sensivelmente nossa percepção de mundo, a relação com outras pessoas, a forma com que lidamos no dia-a-dia com nossas expectativas e vaidades, e também estão alterando a maneira como construímos, tanto no nível pessoal quanto social, a narrativa da nossa própria identidade.
Tudo isso é fascinante, estimulante e nocivo ao mesmo tempo. É maravilhoso ter esse espaço de conexão com tantas pessoas, tanta informação, tanta cultura, mas ao mesmo tempo é um pouco deprimente esse processo de categorizar a identidade e a vida íntima no sistema limitado de rede social, como se um formulário e um álbum de fotos pudessem de fato representar um ser humano em sua totalidade. O risco é o de transferir uma medida excessiva da vida íntima e social para essas redes. Usadas com moderação e bom senso, são uma revolução positiva para a cultura e para as relações humanas.
Cada livro é um processo. O que ficou marcado da época em que você escreveu cada um deles?
Concordo com a afirmação, mas eu levaria horas para dar uma resposta satisfatória a essa pergunta. Os contos de “Dentes Guardados” são resultado de um período de investigação e experimentação, quando estava tateando a possibilidade de me tornar um escritor.
“Até o dia em que o cão morreu” já parte de uma proposta mais segura, na qual eu tentei investigar a sensibilidade de uma parte da minha geração com relação aos objetivos de vida e relacionamentos amorosos. O livro não é biográfico, mas em parte é o exorcismo de uma versão imaginada de mim mesmo, como eu pensava que minha vida poderia ser caso eu fizesse escolhas muito erradas e agravasse radicalmente alguns dos meus defeitos na época em que o escrevi (2003).
“Mãos de Cavalo” é um livro de formação que busca evocar histórias e cenários da minha infância na zona sul de Porto Alegre. É meu livro mais pessoal, embora a trama seja toda fictícia. Foi meu primeiro projeto literário de maior fôlego e exigiu um nível de rigor inédito, que desde então venho tentando perpetuar. É também o livro que me tornou conhecido por um público maior, e o primeiro a sair por uma editora grande. Dos outros eu falo em outra oportunidade, essa resposta já está muito longa.
Com o amadurecimento e experiência adquiridos, o momento do escrever se tornou mais sistematizado? Existe uma disciplina pra você criar?
Acho que foi se tornando um pouco mais sistematizado com o tempo, sim. Mas depende de cada ideia. Pro romance que estou escrevendo agora, tenho um caderno inteiro cheio de anotações à mão, uns dez livros de referência empilhados na mesa e um arquivo de Word com uma tabela cronológica de todos os acontecimentos da história.
Precisei fazer isso porque o livro é longo. Mas no processo da escrita, é comum alterar o planejamento. Cenas novas surgem, cenas importantes caem fora, personagens desaparecem e nascem. Mas a experiência não deixa a escrita mais fácil. Nunca fica mais fácil. Li uma entrevista recente do Philip Roth em que ele diz que mesmo após 35 romances, cada novo projeto continua sendo difícil. Mas é uma dificuldade que me estimula.
Qual a situação do mercado editorial independente hoje? Você se distanciou desse universo?
Me distanciei, mas tenho a impressão de que as editoras independentes se disseminaram como alternativa válida para os iniciantes e até mesmo para os mais veteranos. Uma editora independente já não é notícia, é parte integrante do mercado editorial e as grandes editoras prestam muita atenção nesse tipo de iniciativa, à procura de novos talentos para seus catálogos.
Traduttore = Traditore?
Idealmente, não. Mesmo quando é preciso modificar o texto original para obter uma tradução satisfatória, o tradutor precisa cultivar um senso de fidelidade.
Sobre outro tipo de tradução. Como é enxergar as suas histórias adaptadas?
Eu as encaro como releituras. Alguém leu meu texto, interpretou, teve sentimentos particulares com relação à obra e resolveu recriar em outra mídia, dando a sua versão. Às vezes essa versão é muito fiel à minha própria, às vezes não é. Eu as encaro um pouco com a curiosidade de um leitor, mas na posição de autor sempre há um apego ao original, então no fim das contas é uma sensação bem complexa.
E quanto às questões autobiográficas da narrativa, existe alguma relevância? Dizer que um texto quando ficção já não possui mais relação com a realidade vivida ainda funciona num mundo onde o autor é muito mais acessível?
Excelente pergunta. Pergunta espinhosa. Eu diria que o texto ficcional nunca deixa de ter a sua relação com a realidade, todavia não pode ser medido e julgado somente ou primordialmente por essa relação. A realidade e a imaginação são duas bases igualmente importantes para a narrativa ficcional.
No mundo atual, tenho a impressão de que o leitor valoriza a realidade acima da fabulação, e isso pode se tornar um problema quando a comparação com a realidade norteia a fruição do texto. É natural termos curiosidade sobre um autor do qual gostamos, querer saber um pouco de como a vida pessoal dele se reflete na obra, mas isso é mais uma curiosidade do que uma chave para ler a ficção. Acho desagradável quando essa questão é enfatizada demais com relação aos meus livros.
Cachalote. Ou quantos capitães Ahab são necessários para fazer um trabalho desses?
Nenhum Ahab, um cachalote basta. Eis a fórmula:
Moby Dick > Ahab
Uma baleia não precisa de explicação.
A HQ é um bom exemplo de como as artes podem (e devem) se encontrar. A música também sempre esteve presente no seu trabalho, não?
A música me influencia apenas como referência cultural – uma música inspira um conto, uma banda favorita do personagem dá uma informação sobre seus gostos e sua personalidade etc. Se estamos falando dos meus próprios experimentos amadores com música, afirmo que não passam disso, experimentos amadores. Toco violão e guitarra, participei de uma banda (Blanched, de pós-rock), gravo umas coisinhas em casa ás vezes, mas não me considero músico. É hobby, prazer. Não deposito nisso as mesmas pretensões que dedico à literatura.
Quem você está lendo no momento?
Estou lendo “Ghostwritten” enquanto traduzo “The thousand autumns of Jacob de Zoet”, ambos do David Mitchell. Li ontem a HQ “Ordinário”, do Rafael Sica. Na fila, o terceiro volume de “Seu rosto amanhã”, do Javier Marias, e o “Pornopopeia”, do Reinaldo Moraes.
Algumas pessoas são da opinião de que os brasileiros estão lendo mais. Há como realmente pensar assim?
É provavelmente verdade, embora eu não tenha números e não possa garantir.
Existe algo que você gostaria de escrever e não conseguiu?
Umas oitocentas e vinte e seis letras de música. Nunca consegui escrever letra de música. Não sai. Não sei fazer poesia nem letra de música.
Veja mais: Site de Daniel Galera – Twitter do escritor