Clóvis Dariano iniciou nas artes na década de 1960, estudou com Iberê Camargo, fundou e dirige seu próprio estúdio fotográfico desde 1970, e em 77 idealizou o coletivo “Nervo Óptico” com Carlos Asp, Carlos Pasquetti, Mara Álvares, Telmo Lanes e Vera Chaves Barcellos – publicação que abriu espaço para a discussão de novas poéticas visuais e foi de encontro aos cânones estabelecidos da ditadura. Multipremiado, o fotógrafo possui obras no Museu Francês da Fotografia, Museu de Arte da UFRGS, na coleção Joaquim Paiva, Coleção Gerdau, entre outras. E ainda lhe sobra tempo para lecionar.
De que forma a sua trajetória na pesquisa artística te levou a optar pela fotografia?
Não posso dizer que tenha sido opção, mas talvez uma conspiração. Os elementos foram se organizando de uma maneira que só poderia dar nisto.
A primeira manifestação foi o desenho, depois a pintura e o Instituto de Artes da UFRGS e o momento decisivo, o encontro com Mário Bitt Monteiro, que escondido num estúdio de fotos 3X4 para identidades, me apresentou a fotografia. Eu já estava praticando um desenho que envolvia imagens existentes, pois selecionava fotos em revistas e as recortava para usar como máscaras e pintava com bomba de flit (um pulverizador de inseticidas). Comecei a fotografar coisas para utilizar a cópia como máscara, uma verdadeira blasfêmia. Mas isto foi muito rápido e a fotografia imediatamente ocupou o lugar principal, embora ainda esteja convivendo até hoje com outras linguagens.
Hoje as possibilidades de um fotógrafo fundar seu próprio estúdio requerem um caminho árduo. Quais as dificuldades que você enfrentou?
Caminhos árduos foram os das décadas de 60 e 70. Nesta época não havia a disponibilidade de informação, equipamentos, cursos (que por sinal existem até demais atualmente o que merece atenção para não entrar em “roubada”). A fotografia não era tão culturalizada ou intelectualizada e muito menos popularizada. Como era um assunto de iniciados os recursos técnicos eram extremamente caros e inexistentes. Hoje além de comprar equipamentos em qualquer esquina, uma gama muito grande de câmeras de excelente qualidade está à disposição de qualquer interessado. É claro que os equipamentos de topo de linha ainda são quase inatingíveis, mas o que importa é que existem muitas e ótimas soluções intermediárias.
E falando em estúdios, a digital reduziu infinitamente a necessidade de estruturas muito complexas. Com um pouco de inteligência e conhecimento do ofício se consegue resultados extraordinários, mas infelizmente o que está faltando hoje é exatamente inteligência e conteúdo.
O “Nervo Óptico” surgiu como alternativa à produção vigente. Conte-nos um pouco sobre a história do coletivo, e qual a importância dele para o desenvolvimento de uma identidade enquanto grupo?
A minha experiência com o coletivo foi fundamental para estruturar o pensamento individual. No momento em que os interesses se encontram e definem, se inicia um processo de fortalecimento dos objetivos pessoais porque toda a produção está entremeada de inserções, correções, análises e assim os projetos são discutidos, aceitos ou contestados por mais indivíduos o que inevitavelmente contribui para o crescimento de cada proposta. O “Nervo Óptico”, por exemplo, não foi um grupo, mas sim o resultado de um trabalho em grupo. Diversos artistas que individualmente já desenvolviam trabalhos e utilizavam novas linguagens em artes plásticas, como a fotografia, por exemplo, sentiram a necessidade de reunir-se e debater sobre uma mesma preocupação, o desinteresse do mercado por novas linguagens e suas possibilidades. Alguns fatos foram fundamentais para a aproximação destas pessoas, mas o principal deles foi a presença do artista Julio Plaza no Instituto de Artes trazendo uma novidade redentora, a arte conceitual. Foi a revolução esperada à qual quase todos os alunos se entregaram enquanto alguns professores e artistas rançosos torciam o nariz. Um deles muito importante no panorama das artes chegou a nos tachar de “Sarampo das Artes”, o que na verdade era o que queríamos: ser uma virose que enfraquecesse o organismo artístico vigente.
E na formação individual, fazer parte de um coletivo é enriquecedor ou impõe limites?
Como já disse na resposta anterior, é fundamental, e isto já se percebe desde os bancos escolares, porque todo e qualquer aprendizado se completa pela troca de informações e convivência entre alunos. Quanto à imposição de limites, esta se estabelece conforme a natureza do coletivo. Em alguns agrupamentos chega a ser obrigatório para manter certo direcionamento, mas em tentativas experimentais na área artística seria impraticável e talvez desastroso.
Todo trabalho é, em essência, autoral. Contudo, qual a dinâmica possível para conciliar o trabalho artístico e a fotografia publicitária?
A fotografia publicitária é essencialmente limitadora porque trabalhamos sob o controle da agência e seu cliente, com possibilidades mínimas ou inexistentes de interferirmos no que já está aprovado. Mesmo que a idéia seja ruim temos que realizar o trabalho. Evidentemente existem clientes que aceitam alterações em suas propostas e percebem as diferenças entre um trabalho realizado com uma preocupação autoral, (imagens com conteúdo e estilo próprios) e a utilização de meros maneirismos técnicos. Além disto, a fotografia digital ainda trouxe para os fotógrafos mais um agravante, o fato de alguns (na verdade muitos diretores de arte) solicitarem fotografias de elementos separados para “montarem” a imagem conforme a necessidade, o que afasta o fotógrafo da edição da imagem final. O mais interessante é que estes “diretores” quando se deparam com uma “fotografia de verdade” que não precise ser manipulada por eles, acham que “é muito artística”. Uma produtora gráfica, após eu ter apresentado meu portfólio físico que mistura autoral e comercial,me perguntou: “Mas o que eu vou fazer com isto?”
Tive que me conter para não responder à pergunta. Independente destas pessoas, sempre procuro apresentar um trabalho comercial que esteja impregnado de características domeu trabalho autoral,principalmente da iluminação que é uma das qualidades mais evidentes de minhas imagens, porque como já disse, dificilmente poderei impregná-las com meus conceitos.
Apesar de coexistirem sempre haverá um distanciamento entre o autoral e o publicitário devido as suas origens e seus destinos. Contratações por escolha do trabalho pessoal e a utilização de ensaios livres são comuns nos editoriais e pode-se considerar que neste segmento temos mais liberdade, mas ainda assim existe a presença de um editor.
Na fotografia de autor sem direcionamento de publicação ou outros comprometimentos posso exercer uma completa liberdade. Minha única obrigação é com minhas idéias, o que me permite utilizar a fotografia do modo que me convir.
A facilitação, ou “democratização” do acesso à fotografia, juntamente com a hiperdocumentação, podem ser vistas como vulgarização do resultado final?
A massificação de uma forma de arte, invariavelmente conduz a um achatamento e uma pasteurização de resultados. No caso da imagem digital, esta vem acompanhada de uma hiperdocumentação, o que aumenta geometricamente uma questão já complexa:
– Critério de escolha.
Milhares de imagens são produzidas, mas como saber o que é bom, como editar, e principalmente para que tantas imagens, se provavelmente, noventa por cento destas são imprestáveis? A facilidade de captação joga no lixo alguns dos mais importantes componentes do processo fotográfico, a observação e o tempo para reflexão. Isso está sendo substituído por rapidez desnecessária.
E no final, existe um resultado com uma qualidade que justifique esta paranóia tecnológica?
Se no âmbito profissional já existe esta provocação de acumular imagens, padecer no momento de editar o material, e como se não bastasse se preocupar com o armazenamento e manutenção destas imagens, então o que se pode esperar do fotógrafo doméstico? Aliás, um assunto que merece toda atenção, pois se trata da preservação da memória.
O que você pensa a respeito da forma como as câmeras caseiras vem sendo utilizadas, e de que forma isso altera a visão de mundo das pessoas?
Se você está se referindo à utilização destas câmeras por profissionais, acho muito positivo, porque desmitifica a premissa que o equipamento tem que ser o mais poderoso.
Sempre defendi a idéia de que a boa fotografia nem sempre está arrolada a equipamentos sofisticados. Já vi muita gente empunhando maravilhas tecnológicas e apresentando resultados medíocres, senão desastrosos. Então de uma câmera caseira em mãos experientes e olhos atentos poderão resultar boas imagens. Agora, se a pergunta se refere à utilização por pessoas comuns nos registros pessoais do dia a dia, não sei exatamente de que forma isto pode mudar sua visão de mundo. Esta nova ação seguramente vai proporcionar-lhes a oportunidade de refletir e indagar o que poderia ser feito para melhorar os resultados obtidos.
Isso influi na concepção e recepção da fotografia como arte? E no âmbito profissional?
Sim. Talvez isto aproxime o cidadão comum ou pelo menos lhe facilite o acesso às informações necessárias para a compreensão dos processos necessários à produção artística ou pelo menos para sua leitura. O fato de a ferramenta estar disponível, não o transformará em artista, mas poderá lançar luzes sobre aspectos que até então estavam distantes e obscuros.
Por outro lado poderá haver, como na verdade já contece, uma intromissão em áreas profissionais prejudicando o entendimento em aspectos essenciais das relações comerciais.
O primeiro aspecto atingido é o binômio preço/qualidade. Pessoas completamente despreparadas se julgam capacitadas a exercer uma atividade até então reservada aos profissionais.
Invariavelmente se apresentam ao mercado com preços irreais e péssimos resultados, mas o pior de tudo isso é que são acolhidos como alternativas aos preços “exorbitantes” dos fotógrafos experientes e responsáveis . Este é o pior aspecto do nosso mercado que dificilmente se libertará de suas características provincianas.
Em sua opinião, os equipamentos fotográficos profissionais tornaram-se mais caros por causa da proliferação das câmeras caseiras?
Equipamentos profissionais sempre foram mais caros, obviamente, pelos recursos adicionados às câmeras, qualidade dos materiais empregados etc., mas não vejo relação entre aumento de preços e a proliferação de câmeras mais populares.
Ainda sobre o valor do equipamento, em que medida isso é referência para qualificar o trabalho de um fotógrafo? Existem realmente necessidades específicas para as quais é imprescindível a aquisição de uma ou outra ferramenta ou acessório?
É claro que equipamentos de alta qualidade favorecem resultados de alta qualidade, obrigatórios na fotografia artística, comercial ou jornalística, mas não é somente isso que qualifica o trabalho de um fotógrafo. A este item acrescente-se conhecimento técnico, capacidade para gerenciar os demais profissionais que sem dúvida estarão envolvidos, sensibilidade artística e conhecimento do assunto que está em pauta. Agora quanto à necessidade de equipamentos específicos, isso sim faz diferença. Para cada modalidade de fotografia existe um equipamento mais apropriado.
Exemplificando: Para esportes ou vida selvagem é obrigatória a presença de uma teleobjetiva de grande alcance (talvez 500 mm ou mais) e de grande luminosidade, enquanto para trabalhos de estúdio não seria necessária. Assim como uma câmera de grande formato tipo “mono rail” muito utilizada em fotografia de estúdio ou em externa para paisagens e arquitetura, seria simplesmente inviável em fotos de ação. Então este é um ponto onde o novo fotógrafo que pretende iniciar carreira, deve estar atento e definir exatamente seu campo de ação para investir no equipamento correto e não ter despesas desnecessárias. Com o passar do tempo e a evolução do seu trabalho estes equipamentos serão complementados conforme a nova demanda.
A questão que ainda polemiza: Analógico x Digital, o que se ganha, o que se perde?
Na digital, o exercício intrínseco da fotografia não sofre alterações. As modificações surgem na rapidez de processamento da imagem, a grande capacidade de captação de imagens mesmo em condições de luz muito variáveis, o acesso a um sem fim de recursos num aparelho só, etc. Junto com estes benefícios vem algumas preocupações, como oaumento geral de investimento (computadores, dispositivos de armazenagem, etc.), desmentindo um suposto barateamento, reposição de câmeras pelo fato de a cada click o obturador desgastar, o obsoletismo meteórico dos equipamentos, a grande incógnita da durabilidade das mídias, e o fantasma do armazenamento devido à hiper documentação e o conseqüente risco da perda de memória.
Além do mais, uma interferência prejudicial nas relações comerciais devido à facilitação de acesso de pessoas despreparadas técnica e artisticamente.
E a outra questão associada diretamente a anterior: Tratamento digital (Photoshop e afins). Existem limites para a manipulação de uma imagem?
A ferramenta Photoshop é indispensável para a revelação das imagens, fazendo as vezes do laboratório tradicional. Manipulações básicas como balanceamento de cores, ajustes de brilho e contraste, utilização de filtros como de definição, etc. são normais. Na área comercial, mais especificamente na publicidade estas manipulações ou tratamento expandem sua utilização ultrapassando muitas vezes a barreira do aceitável. Quando se trata de imagem que tem a intenção de realidade (ou melhor, simulacro da realidade) o limite deveria ser estipulado pelo bom senso. Retoques de pele muito acentuados transformam as pessoas em “bonecos inexpressíveis”. Mas se as imagens estão sendo tratadas com uma intenção transformadora para criar uma leitura ilustrativa e ficcional este limite desaparece. É o caso da fotografia aplicada às artes plásticas.
Já no foto jornalismo, o tratamento se restringe as correções básicas, uma vez que seria completamente antiético qualquer manipulação mais drástica, seja num ambiente, numa paisagem ou numa pessoa. O foto-jornalismo tem compromisso com a verdade e as interferências não devem alterar as evidências ou deturpar os fatos. O foto jornalismo deve ser isento, apartidário e
principalmente honesto.
Em sala de aula você deve frequentemente se deparar com tais discussões. Qual é a dinâmica da sua rotina acadêmica e de que maneira ela afeta e/ou complementa o seu trabalho?
A sala de aula oportuniza um exame crítico de minhas posições diante das obrigações impostas pelo meu ofício tanto no aspecto conceitual e artístico quanto no aspecto técnico. Obriga-me a uma atualização constante de maneira que possa estar, dentro do possível, respondendo e solucionando questões apresentadas pelos alunos. Como em qualquer aspecto da vida,estas discussões nos conduzem a um aperfeiçoamento de nossas ações num exercício que conseqüentemente repercute no nosso trabalho. É impossível desvincular uma ação da outra e, no meu entender, nada pode ser compartimentado e toda a nossa experimentação, tanto de aprendizado quanto de ensino, é um processo acumulativo.
Que tipo de profissional os alunos e pesquisadores de fotografia estão procurando se tornar atualmente?
Nos primeiros contatos fica evidente a confusão que o atual momento gera na mente das pessoas. Algumas questões como, digital x convencional (analógica é um termo que acho que não cabe para definir o estágio anterior da fotografia), “fotografia é arte?”, “fotógrafo é artista?”, “fotojornalismo é arte?”, “o que é arte?”, “porque isto é e aquilo não é?”, etc.
À medida que avançamos eliminando as deficiências técnicas e gradativamente esclarecendo, situando e contextualizando estas e outras dúvidas, começa a se delinear o perfil de cada indivíduo. Isto vai se fundamentando enquanto se oferece experiências que ainda não haviam sido vividas, principalmente quando se apresenta resultados excepcionais construídos anteriormente ao advento do digital e do photoshop. Trata-se da descoberta por parte dos alunos de que a tecnologia existe graças à criatividade do homem, e, portanto ela sozinha não é solução para nada. Talvez neste momento, quem pretendia simplesmente ganhar dinheiro, comece a pensar em produzir uma obra que seja uma contribuição à cultura.
Ainda há espaço e contingência para se transgredir e inovar na arte fotográfica?
Enquanto houver tentativas de implantar sistemas e normas de procedimento, haverá espaço para a transgressão, e a necessidade de inovação. Agora mesmo, em meio ao entusiasmo digital, está a revitalização de métodos considerados ultrapassados, mas que são garantidos em termos de armazenamento de memória, portanto, mesmo uma releitura ou reaproveitamento de uma ação do passado podem ser considerados uma transgressão.
Qual a foto que você nunca conseguiu fazer?
Realmente não sei, porque até este momento, não pensei em nenhuma que não tivesse conseguido fazer.