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Imagem: Gabriela Belnhak (Macondo Coletivo)

Atílio Alencar é meio Caetano Veloso, meio Devendra Banhart. Para quem segue o circuito alternativo do RS, ele é o “Atílio do Macondo”. Macondo Lugar é o ponto cultural mais efervescente de Santa Maria desde 2005. Seu nome tem origem na cidade imaginária que ambienta a saga narrada no livro Cem Anos de Solidão, do colombiano Gabriel García-Márquez – um universo fabuloso e inspirador, situado num lugar mítico em algum ponto da América do Sul, onde tudo pode acontecer – e de fato acontece. Hoje, o Atílio não é apenas “do Macondo”. Ele é de vários lugares.

Onde tudo começou: como surgiu o Macondo, e a ideia de bancar um espaço para o público alternativo no interior?

O Macondo Lugar foi inaugurado a partir de uma movimentação intensa – embora um tanto pulverizada – que estava em curso em Santa Maria na primeira metade da década passada. Um espaço pensado enquanto confluência, mix de linguagens, e, acima de tudo, foco de experimentação estética e política. Arrisco-me a dizer que em termos de comportamento, o Macondo Lugar dividiu águas na cidade…e também nós, fundadores do bar – não ficamos a vontade com o nome bar, mas enfim.. – da casa, que seja, éramos já envolvidos com coletivos, transitando entre a educação popular e a intervenção urbana. Tínhamos certo apreço pelo ”terrorismo poético” na época, e uma boa circulação entre as diversas tribos urbanas, o que facilitou a boa aceitação do Macondo Lugar pelo público dito alternativo (se diz assim ainda?) de Santa Maria. Ah, sim, muito importante: o nome Macondo, pra quem não sabe, retiramos do clássico Cem Anos de Solidão, de García-Márquez, obra que todos os envolvidos adorávamos.

Você já trabalhava com algo relacionado antes do bar?

Sim. Passei, junto com o Bernardo, por um coletivo de educação popular, o Práxis, mas em dado momento as divergências políticas se tornaram insuportáveis e caímos fora, isso lá pelos idos de 2003. Depois fundamos nosso ”próprio” coletivo, o Inferno 75, nome que fazia alusão ao quarto que habitávamos na Casa do Estudante – éramos bem infernais, mesmo, ao menos pra vizinhança, e vivíamos de promover eventos de artes integradas. Daí, de vez em quando, íamos à aula também (risos). Eu me formei em História, e o Bernardo, em Filosofia, e chegamos a dar aulas, antes de enveredarmos total para a área do ativismo cultural.

Com o tempo a circulação de shows foi aumentando, e Santa Maria virou parada obrigatória para bandas que vinham de fora. Quando vocês se deram conta que poderiam investir num festival?

Na verdade, o festival surgiu antes da casa, em 2004 já realizamos a primeira edição do que viria a ser conhecido como Festival Macondo Circus (que teve sua sétima edição realizada em 2010). Junto com um coletivo de bandas hardcore, o Movimento Sub-Asfáltico, fomos para a zona rural da cidade e promovemos o Circo Mágico, uma bálburdia alucinante com mais de 40 bandas em dois dias de programação, totalmente artesanal e intuitivo… Negócio bem hippie mesmo, mas que serviu de embrião para o que hoje é um dos festivais independentes mais importantes do sul do Brasil.

O que se percebe também é que a cena de lá começou a funcionar independentemente de Porto Alegre.

Total, né? Até porque se você pensar, temos no sul uma cultura que ainda teima em acreditar que Porto Alegre é o lugar por excelência da cultura, o epicentro da música etc etc… E esta tradição a gente sempre contestou, a vida na era digital abalou total estas noções de centro e margem, e nos parece cada vez mais óbvio que, apesar de abrigar bandas muito boas, Porto Alegre ainda é um tanto desconectada da cena independente que ferve no país. Aliás, sem nenhum pingo de falsa modéstia, eu diria que o Macondo Lugar e o Macondo Coletivo inclusive auxiliaram a incluir Porto Alegre num circuito mais amplo, dado que nosso trabalho em rede começou a fazer circular mais intensamente nomes que são emblemáticos desta nova música independente.

Foi então que surgiu o Macondo Coletivo, transcendendo o espaço da casa de shows para um ambiente multicultural?

Sim, a Associação de Produtores Independentes Macondo Coletivo é, de certa forma, um desdobramento do Macondo Lugar, por este ter sido o espaço de encontro de tantos agentes hoje implicados no coletivo. Mas hoje são esferas completamente distintas, ainda que dialogantes. Cumprem papeis diferentes, e muitas vezes complementares. O Macondo Coletivo é o ponto de articulação do Fora do Eixo no sul do Brasil, e o Macondo Lugar uma das casas referenciais de shows independentes do Brasil.

E o festival, Macondo Circus. Segundo o documentário, já existia antes da casa?

Sim… Acabei respondendo isso lá em cima, (risos)… Mas o bacana é que fomos aos poucos aprimorando nossas ferramentas de produção, e a partir da prática de trocas de tecnologias e trabalho colaborativo, hoje o Macondo Circus é um dos festivais da Abrafin que mais movimenta a cena no sul do Brasil, ocorrendo em espaço público e apostando fortemente na formação de público.

Sala Dobradiça (núcleo de artes visuais do Macondo). Imagem: Lucas Baisch (Macondo Coletivo)
Sala Dobradiça (núcleo de artes visuais do Macondo).
Imagem: Lucas Baisch (Macondo Coletivo)

Sobre as associações. Como vocês foram se organizando?

A gente foi, no início, tateando um tanto quanto intuitivamente, associando com outros agentes por necessidade e convicção política. Mas só mais tarde, já em 2008, fomos sacar o Fora do Eixo e Abrafin, que são hoje as redes mais ativas das quais participamos. O Macondo Coletivo busca sempre dialogar com movimentos sociais e coletivos de outras áreas de atuação, porque acreditamos que atuar na área da cultura é, além de um empreendimento econômico, também constituído de uma série de proposições antropológicas, humanas mesmo. Ou pós-humanas, como queiram.

Sobre as associações. Como vocês foram se organizando?

A gente foi, no início, tateando um tanto quanto intuitivamente, associando com outros agentes por necessidade e convicção política. Mas só mais tarde, já em 2008, fomos sacar o Fora do Eixo e Abrafin, que são hoje as redes mais ativas das quais participamos. O Macondo Coletivo busca sempre dialogar com movimentos sociais e coletivos de outras áreas de atuação, porque acreditamos que atuar na área da cultura é, além de um empreendimento econômico, também constituído de uma série de proposições antropológicas, humanas mesmo. Ou pós-humanas, como queiram.

Aqui no Sul os recursos de incentivo à cultura são poucos. Isso está mudando?

Acredito que a movimentação da sociedade civil é só o que pode garantir um avanço neste sentido, há gestões mais abertas e outras menos, mas o governo, por si só, não vai presentear a sociedade com políticas públicas mais abrangentes. Acredito em governança, não no engessamento de estruturas de governo. Movimento. Mas o momento é propicio para avançarmos, creio.

O que se percebe também é que os entusiastas em realizar novos projetos não tem a mínima instrução de como participar de um edital (público ou privado), e que muitos órgãos tampouco estão preparados pra lidar com isso.

Então, é neste sentido que devemos estar organizados, que o trabalho em rede pode contribuir para a democratização do acesso aos recursos e tal… a inteligência coletiva tem uma dinâmica muito mais ágil que o modelo auto-centrado das corporações, mas é preciso estar disposto a assumir práticas mais generosas, mais colaborativas, ser menos protecionista e mais horizontal mesmo. Compartilhar conhecimento, o tempo todo, promover o código aberto. Enfim, questão de postura, mesmo.

O que vem primeiro: a formação de um público consumidor de cultura, ou a estrutura pra fomentar as iniciativas?

Ambos caminham lado a lado, claro, mas é vital que se disponha de condições básicas, como bons aparelhos culturais, ensino de qualidade, cursos de formação, investimento na economia da cultura, urbanismo criativo e sensível ao convívio das gentes. É difícil setorializar a vida, cada vez mais percebemos que cultura, política, economia, sociedade, estará tudo junto, não é mais possível sobrepor em camadas a existência social.

A internet colaborou pra chegarmos num nível considerável de divulgação de ações e eventos artísticos. O Fora do Eixo está relacionado diretamente à rede?

O Fora do Eixo é um movimento que expressa muito bem esta dinâmica de rede. O Fora do Eixo é a rede, na verdade. Porque se você pensa em conectar Rio Branco, no Acre, e Santa Maria, no Rio Grande, isso soaria pouco provável, na velocidade em que hoje se dá, há dez anos atrás. A rede mundial hoje propicia isso. E movimentos como o Fora do Eixo estendem o potencial destas ferramentas ao extremo, constituindo novas formas de relações criativas, produtivas. É revolucionário, na acepção mais contemporânea do termo.

A questão polêmica. Há como sobreviver dessa forma? O que é essa “Economia de Cultura” tão em voga ultimamente?

O termo sustentabilidade não é brincadeira pra gente. Pesquisar novas formas de relação econômica mais solidárias, que valorizem a troca direta, é um campo muito intenso no Fora do Eixo. Existe um Banco Fora do Eixo, moedas complementares, sistema de quantificação do que chamamos CARD – que nada mais é do que a força de trabalho de cada um – núcleos de confecção de projetos etc é algo constante no circuito. E está aí, temos hoje bandas de todas as regiões do país circulando, artistas novos conseguindo muito rapidamente mostrar seu trabalho, selos e distribuidoras independentes pipocando, festivais fomentando a cena… sim, a sustentabilidade é possível, para além do discurso. E economia da cultura é justamente entender como a dimensão cultural gera riquezas, movimenta mercados, universo de empregos etc. É a passagem da arte romântica para a arte auto-gestada, o que me parece uma evolução.

Na sua concepção, essa ideia de turismo cultural pode mesmo servir para a circulação de informação e formação da sociedade, ou se corre o risco da iniciativa se transmutar num novo meio de recursos para a indústria cultural das grandes produtoras, gravadoras, etc.?

A indústria da intermediação está em crise, mas ainda agoniza… sim, acho muito importante que tenhamos cuidado com questões como o turismo cultural, que tanto podem vir a somar para o desenvolvimento humano quanto constituir uma nova roupagem para a velha indústria cultural, ainda que que assimilando códigos atuais. Mas em verdade, sou leigo no assunto, e não poderia opinar de maneira substancial.

Ainda dá pra acreditar que podemos mudar o sistema de dentro dele?

Dá pra atravessar o sistema, criando múltiplas formas de relacionamento, ressignificando estruturas. Até que ponto isso é revolucionário, a história é que vai dizer, né?

Nove entre dez estrelas de cinema te provocam o que?
Tédio (risos).

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