A obra de Alessandra Pohlmann trafega por linguagens como o desenho, a escultura e a instalação. Esculturas que suportam uma visão ambígua e flutuam entre algo conhecido, algo abstrato e algo narrativo. É Bacharel em Poéticas Visuais em Escultura, com Láurea Acadêmica pelo Instituto de Artes da UFRGS em Porto Alegre. Possui formação anterior em Arquitetura e Urbanismo, se especializou em Sevilha, e ganhou um prêmio na Bienal de Arquitetura em Barcelona. Suas exposições vem ganhando o mundo: Londres, Colônia, Santiago do Chile, onde mostra um trabalho atual, utilizando-se de materiais como o plástico e a cera, criando um jogo de transparências luminosas. De malas prontas pra Nova Iorque, Alessandra fala um pouco sobre os caminhos possíveis para a escultura.
Da arquitetura para as artes, você considera essa trajetória um passo comum?Fale-nos sobre o seu caso.
Todo arquiteto nunca deixa de ser um artista. No meu caso o que sempre me atraiu dentro da arquitetura era o fato de trabalhar com criação e desenho. Paralelo aos projetos que fazia, sempre tive atividades que incluíam trabalhos com as mãos, me envolver com a feitura das coisas. Costumava dizer que poderia ser um operário, pois o que me agradava era estar executando algo.
Para a escultutra foi simplesmente um crescente do que eu vinha fazendo. Em certo momento comprei uma solda elétrica e comecei a fazer minhas peças, sem experiência alguma. O que me levou ao Instituto de Artes da UFRGS foi a busca de aprimoramento técnico, pois imaginava coisas que eu não possuía o conhecimento para execução.
A partir de então entrei em contato com toda uma nova forma de ver e apreciar a arte. Com um olho treinado para ver as coisas enquanto arquiteto, o que se deu foi uma ampliação do olhar. Dentro do Instituto de Artes, há vários arquitetos que trilham este mesmo caminho, mas cada um com seus devidos enfoques. Posso dizer que sim, para muitos isto é um passo natural, é mais um braço em um corpo que busca este aprimoramento estético, que às vezes não temos certeza exata do que é, e de que forma vai se apresentar. É uma busca.
Trabalhar com a forma concreta é uma atividade pouco popular nesse todo pós modernista de vídeo, foto e mídias em geral. Como você chegou nessa escolha?
Tenho trabalhado com materiais que são facilmente moldados pelo movimento e que podem absorver o gesto, a impressão da mão. Minha inclinação por algum tempo foi confiar impulsos instintivos relacionados a um desejo biográfico para expurgar crescimentos. Isso me levou a experimentar progressões de padrão simples, que são facilmente reconhecíveis, mas difíceis de determinar em sua origem. São padrões de natureza semelhante que falam de crescimentos e desagregações, similar a progressões de Fibonacci.
Esculturas de narrativa incerta, a partir de supostos embriões ou tumores, que tem a escala de algo que o corpo poderia produzir, são ambíguas ainda que fortes, vivas e, paradoxalmente fossilizadas. As razões por trás de sua aparência são pessoais e dizem respeito ao meu próprio desenvolvimento, no entanto o impulso inicial não é necessariamente o final na leitura destas obras, que se expandem para além de mim mesmo e são capazes de aceitar as projeções dos espectadores.
A série denominada “Entranhas” é a base de uma investigação em curso sobre os excessos naturais e não-naturais, o que Bataille tão famosamente falou como o “informe”, um conceito que ainda está para ser totalmente compreendido, mas que sempre parece estar fora de alcance. Este tem sido uma fonte de inspiração, uma busca intelectual, para por em marcha uma obra que não está definida, fechada, mas que tem uma tarefa a fazer, de agir no mundo, de resistir e expandir-se.
É um trabalho que têm uma afinidade com objetos feitos a mão, que mais pessoas possam se relacionar, sua dimensão fala sobre esta disponibilidade.
Pedem quase para serem tocados, especialmente na instalação onde estão dependurados como vagens, iluminados pontualmente a partir do solo, em êxtase, grávidos de potencial. Há uma teatralidade nisto, onde o espectador move-se em torno destas coisas dependuradas, interagindo por estar imerso neste mesmo espaço, no entanto, afastado por ser um tipo de visitante silencioso de uma cena estranha.
A este respeito, é uma atitude muito diferente da que tinha Oiticica quando pensava a participação do espectador, mesmo sendo uma referência muito importante na renovação de suas soluções, nesse caso parece-me interessante experimentar esta dialética. Nem toda participação deve ser imediatamente positiva e convidativa.
Qual sua atual linha de pesquisa?
Este ano estive produzindo em parceria com Cristobal Lehyt, artista chileno, em uma série denominada “Série Eclesiástica”, que versa sobre santos católicos como emblemas contemporâneos do excesso e da sexualidade, após a leitura inicial feita pelos artistas do passado. Em Londres produzimos “O Extasis de Santa Teresa”. Possui esse nome enquanto chave para compreender parte do seu significado, pois se refere às dobras da famosa escultura de Bernini, as pregas ondulantes barrocas, tão prenhe de significados, são os ritmos do clímax do santo / sexual espiritual.
A peça é a manifestação aparentemente abstrata dessa série de ondas de prazer e a representação de uma coisa muito terrena. Nas duas obras mais recentes, uma para a Alemanha e outra para o Chile, aparece na figura de São Sebastião como um ícone gay do desejo mal disfarçado através dos séculos. Nestas, “São Sebastião I” e “São Sebastião II”, um novo material tem sido utilizado, determinando a forma e o conteúdo de tais esculturas.
O primeiro passo é definir que tipo de arte se quer desenvolver, o segundo, é a pesquisa e a execução. Que suportes existem para isso aqui no Brasil (ou se preferir, no RS), e qual a sua opinião sobre a estrutura disponível para o estudo das artes?
O Brasil ocupa um lugar de prestígio na cena mundial das artes Visuais. Isto se reflete internamente, pois existe sim espaço e suporte para tal. Há várias linhas de bolsas de apoio a cultura, seja em caráter regional ou nacional, em entidades públicas ou privadas. Há os editais que disponibilizam verbas para projetos, assim como a ação de instituições com programas de estímulo a arte e cultura. Quanto ao ensino de Artes Visuais o Instituto de Artes da UFRGS, se não me engano, recebeu ano passado o prêmio como uma das melhores instituições de ensino em artes. A Instituição, como toda instituição pública, tem seus problemas de estrutura, mas o corpo docente, que também atua na organização da instituição, é em grande parte formado por pessoas empenhadas e competentes. E o que mais me tocou foi a forma como as pessoas são vistas e tratadas, há uma proximidade professor/aluno que quando estudei arquitetura em uma universidade particular não havia sentido. Como em qualquer graduação há fatores a considerar, pois os professores estão a tua disposição e o interesse é de cada um em aprofundar sua pesquisa, pois como em tudo, há sempre os pouco interessados.
Você demorou pra achar meios de expor? A mítica de conseguir espaços apenas por meio de apadrinhamentos ainda permanece?
Existem vários editais locais e nacionais para isto, o que é um bom começo para montar currículo. Porém quando se começa a pleitear outro tipo de vinculação, com certeza quem tem êxito são as pessoas que possuem afinidades com relações de traquejo social.Pois são estas que irão ganhar os espaços. Com certeza faz-se necessário um bom trabalho, mas isso não é tudo. Porém assim funciona em qualquer área profissional. Ninguém vence sozinho. Ainda mais hoje, onde as redes sociais estão em grande evidência.
Como diferenciar apoios e recursos dos trabalhos por indicação? Isso é possível?
Isso se dá de várias formas. A indicação só vem quando já se está em alguma rede. Quanto ao apoio, voltamos aos editais, a não ser que já se esteja em outro patamar, onde se é convidado a fazer uma determinada exposição e se recebe uma quantia que corresponderá ao tempo equivalente que passará trabalhando. Porém, neste caso, somente conheço este tipo de situação quando existem curadores renomados ou colecionadores envolvidos, onde há um interesse evidente no trabalho de um determinado artista.
Sobre a sua produção. Sempre houve uma identidade característica no seu trabalho ou ela foi surgindo gradualmente?
Tal qual o Oroboros, essa idéia de um mundo em constante fluxo, que não tem início, meio, fim determinado, onde as coisas se autofecundam, a expressão formal à qual minha pesquisa adota, é o resultado de vivências e formações anteriores, o acúmulo de saber e o não-saber, ainda que incoerentemente associados dentro de uma forma de existência não plenamente definida, as esculturas buscam essa estética interna, visceral, curva, que finda em si mesmo.
As peças surgem de forma espontânea e orgânica, sem uma pré-concepção ou projeto estritamente pensado, somente um conjunto de ideias e sensações que permito que se manifestem na matéria. O fazer escultórico é intuitivo a partir do material que tenho em mãos, com este me ditando o caminho a seguir. O processo se dá através de uma espiral de pensamentos ordenando o caos, onde o centro não é uma imagem, mas uma formação em processo. O objeto, que é o centro do evento tem como matriz conceitual a forma dilacerada, arrancada do corpo através das mãos, formando-se com as mãos e intuições.
Você relaciona a escultura com outros suportes artísticos (pintura, música, foto, etc)?
Uma coisa essencial dentro do processo de produção artística é aliar eventos, de forma a ampliar a percepção dentro de sua própria produção. A utilização de outros meios seja como registro ou até exaltação do mesmo são sempre interessantes. Paralelamente as minhas instalações, sempre há uma série de desenhos que acontece mesmo que não sejam vinculadas juntamente, pois as formas estão tão pulsantes que elas se manifestarão de diversos meios.
O registro das mesmas através de fotos podem também gerar outros trabalhos, ou seja, a partir de uma raiz a manifestação se amplia, como um caledoscópio que conforme o ângulo te oferece diferentes possiblidades.
E ser reconhecida como uma artista de identidade brasileira? Conte sobre as experiências no exterior.
Por ocasião da residência artistica na Gasworks, em Londres, na troca com diversos artistas de outros países surgem apontamentos sobre o tipo de trabalho que se executa. Somente então percebi que fazia sim, parte de uma expressão que é ligada ao fato de ser brasileira. Trabalhos que eu considerava tão individuais que se referiam a quem sou e como me relaciono com meu mundo, de repente foram relacionados a uma tradição na escultura brasileira de falar sobre o corpo, as formas orgânicas , ritmadas.
E longe de me sentir denegrida, pois é muito forte aqui no Brasil, quando se fala sobre isto – as pessoas imediatamente se protegem discursando sobre sua autonomia artística – essa observação me fez refletir sobre minha produção e dar um passo a frente e deixar de falar de verdades pessoais para falar de narrativas mais amplas.
A esposição em Colônia, “Like a river that stops being a river or like a tree that is burning on the horizon without knowing it is burning…” falava justamente disto, da busca de um maior entendimento das práticas contemporâneas relacionadas a América Latina. A possibilidade de rastreamento de relacionamentos pessoais e universais que adicionam camadas de interpretações possíveis dentro de cada obra.
Você já participou de várias Bienais do Mercosul, em funções diferentes. Qual sua impressão sobre a experiência bienal como um todo?
As Bienais do Mercosul inauguraram em Porto Alegre um novo momento na produção artística, profissionalizando a cena local, consagrando locais, fomentando a produção. Mesmo que timidamente se compararmos a importância desta Bienal dentro do circuito mundial de Bienais, estamos sendo inseridos em um circuito maior, e isto se reflete tanto na produção quanto na divulgação do trabalho de artistas gaúchos.
Existe um “ranço“ local para com a Bienal. Pois, é fato, existe uma consagração e para entrar neste circuito, como já falamos, há um caminho a ser percorrido. Porém, ele é simples e uma questão de empenho.
Existe um lugar para a arte? Ou melhor, a arte deve ser enquadrada em algum lugar?
Por ser uma expressão livre, acredito que se a enquadrarmos estaremos limitando-a.
Quais os seus planos para Nova Iorque?
O intuito é de continuar produzindo cada vez mais intensamente, e como foi colocado, menos enquadrado e cada vez melhor situado neste processo.
Como dito anteriormente, a escultura é quase marginalizada nos dias de hoje. Mas sabemos que os artistas estão por aí. Cite alguns dos seus favoritos.
Não acredito que a escultura seja marginalizada. O que existem hoje são novas linguagens, não falamos apenas de escultura de pedestal. Temos um leque muito grande de possibilidades que vão de instalações a performances, e que vemos sim como esculturas. O conceito de escultura hoje é mais amplo. Internacionalmente acho incrível o trabalho de Tara Donovam, Anish Kapoor, Joseph Beuys , Linda Benglis, Mata Clark, a lista é grande, e difícil citar todos. Nacionalmente, Ernesto Neto, Tunga, José Damasceno. Na cena local temos Túlio Pinto da Subterrânea, que tem trabalhos incríveis.
Arte é…
Como diria Andy Warhol: “arte é qualquer coisa bem feita”.