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Imagem: Divulgação

Terminei de ler “Achei que meu pai fosse Deus – e outras histórias verdadeiras da vida americana” neste final de semana, num insípido quarto de hotel. Abandonei o livro com tristeza, na cabeceira da cama. Ele foi devorado em menos de uma semana de leitura noturna, entre lágrimas, sorrisos, gargalhadas, leituras de trechos em voz alta para amigos e emoções conflitantes.

É um livro de histórias. Nas 400 páginas da edição nacional, Paul Auster reuniu algumas das milhares de histórias que recebeu de americanos comuns de todos os Estados. Tudo começou quando Auster recebeu uma proposta para ter um programa numa rádio pública. De pronto, ele recusou. Chegando em casa, sua esposa lhe deu uma idéia: quem disse que ele precisaria escrever as histórias? Ele podia pedir aos ouvintes que enviassem as suas histórias, ele seria o transmissor delas. Nascia, então, o National Story Project.

Um trecho da introdução de Paul Auster explica bem essa escolha pela história dos outros: “Todos nós temos uma vida interior. Todos nós sentimos que fazemos parte do mundo e, contudo, nos sentimos exilados dele. Todos nós ardemos nos fogos de nossa existência. As palavras são necessárias para expressar o que está dentro de nós (…) passei a apreciar com que profundidade e paixão a maioria de nós vive dentro de si mesmo (…) Aprendi que não estou sozinho na minha crença de que, quanto mais compreendemos o mundo, mais esquivo e confuso ele se torna. Se você não tem certeza sobre as coisas, se sua mente está suficientemente aberta para questionar o que vê, você tende a ver o mundo com grande cuidado, e dessa observação atenta vem a possibilidade de ver algo que ninguém viu antes. Você tem de estar disposto a admitir que não possui todas as respostas. Do contrário, jamais terá alguma coisa importante para dizer.”

No começo do projeto, Auster especificou o tipo de história que estava interessado: tinham que ser verdadeiras e curtas. Não havia restrição de tema ou estilo. No entanto, o mais importante é que fossem interessantes a ponto de mostrarem facetas surpreendentes do ser humano. Como diz Auster, “histórias que desafiassem nossas expectativas em relação ao mundo, casos que revelassem as forças misteriosas e incognoscíveis que atuam em nossas vidas, em nossas histórias de família, em nossas mentes e corpos, em nossas almas. Em outras palavras, histórias verdadeiras que parecessem de ficção”.

Um ano depois, Auster tinha mais de 4 mil histórias nas mãos. Um programa de 20 minutos mensais nunca teria condições de dar conta de tanto. Organizar este livro foi uma forma de tornar conhecidas um maior número de histórias possível. São histórias que impressionam, diretas e muito simples, escritas por pessoas de muitas condições sociais e educativas diferentes. São relatos engraçados, encontros milagrosos, sofrimentos, sonhos, quase sempre narrados de forma direta e crua, sem pretensões literárias. O escritor dividiu o livro em dez temas: Animais, Objetos, Famílias, Humor, Estranhos, Guerra, Amor, Morte, Sonhos e Meditações. “Cada história é pequena o suficiente para caber no bolso. Tal como as fotos de família que carregamos na carteira”, diz Auster.

Ao dar voz aos comuns, Auster engrandeceu a literatura mundial com um livro essencial para se entender que “nunca fomos perfeitos, mas somos reais”. Sem hipérbole, “Achei que meu pai fosse Deus” é um dos 5 livros favoritos da minha vida.

E olha que eu gosto muito de ler.

Confira uma das histórias contadas no livro:

Um Natal em família

Meu pai contou-me esta história. Ela aconteceu no começo dos anos 20, em Seattle, antes de meu nascimento. Ele era o mais velho de seis irmãos e uma irmã, alguns dos quais haviam saído de casa.

As finanças da família estavam péssimas. O negócio de meu pai fora à falência, quase não havia empregos e o país estava perto de uma depressão. Naquele ano, tínhamos uma árvore de Natal, mas nada de presentes. Simplesmente não podíamos comprá-los. Na véspera do Natal, fomos dormir deprimidos.

Entretanto, quando acordamos na manhã do Natal, havia um monte inacreditável de presentes sob a árvore. Tentamos nos controlar no café-da-manhã, mas foi a refeição mais rápida de nossas vidas.

Então a diversão começou. Minha mãe foi a primeira. Ficamos em volta dela, na expectativa, e quando ela abriu seu pacote vimos que ganhara um velho xale que ela havia ‘posto em lugar errado’ vários meses antes. Meu pai ganhou um machado velho com o cabo quebrado. Minha irmã ganhou seus velhos chinelos. Um dos meninos ganhou uma calça remendada e amassada. Eu ganhei um chapéu, o mesmo que achava que havia deixado num restaurante, um mês antes.

Cada coisa velha trouxe uma nova surpresa. Não demorou para que todos estivéssemos rindo tanto que mal conseguíamos abrir os pacotes. Mas de onde viera toda aquela generosidade? De meu irmão Morris. Durante meses, ele escondera coisas velhas, das quais sabia que não daríamos falta. Então, na véspera do Natal, depois que todos foram para a cama, ele embrulhara em silêncio os presentes e os pusera sob a árvore.

Foi um dos melhores Natais que tivemos.

Don Graves, Anchorage, Alasca

Veja mais: Site Oficial de Paul AusterSite da Companhia das LetrasSite do The National Story Project