Alta de títulos americanos e mau humor local levam dólar a R$ 5,65

O Estado de S. Paulo

 

Depois de começar o dia em baixa, o dólar inverteu o sinal e registrou ontem alta de 1,16%, cotado a R$ 5,65. É o maior valor de fechamento desde 10 de janeiro de 2022 (R$ 5,67). A valorização da moeda no ano chegou a 16,48%.

 

O movimento foi embalado por forte aumento dos rendimentos dos títulos do Tesouro americano (os “treasuries”), na esteira da corrida eleitoral nos EUA, e também por novos ataques do presidente Luiz Inácio Lula da Silva à autonomia do Banco Central. Desta vez, Lula disse que a autonomia só interessa ao mercado financeiro (mais informações na pág. B2).

 

O aumento nos “treasuries” – que atingiram o maior patamar em um mês – tem o efeito de atrair mais recursos para investimentos nos EUA, fortalecendo o dólar em relação a outras moedas. A alta de ontem refletiu a avaliação de aumento das chances de Donald Trump voltar à Casa Branca após o desempenho ruim do presidente Joe Biden em debate na semana passada.

 

A questão é que o real vem perdendo mais do que outras moedas de países emergentes. Ontem, apenas o rand sul-africano e o rublo russo tiveram também queda maior do que 1% ante o dólar. Para analistas, isso está ligado a fatores internos, como a previsão de que o governo não vai conseguir zerar o déficit público e o temor de maior interferência no BC após a saída de Roberto Campos Neto – em dezembro.

 

“Tem um movimento mais global de aversão ao risco que é potencializado pelo lado doméstico, com a indefinição da questão fiscal”, disse o economista-chefe da Monte Bravo, Luciano Costa. “O mercado quer esperar efetivamente as medidas concretas, como bloqueio e contingenciamento de despesas, e um Orçamento viável para 2025.”

 

Operadores relataram movimento comprador mais intenso no mercado futuro, com possível disparada de ordens para limitação de perdas por investidores que ainda carregam “posições vendidas” em dólar (que apostavam na queda da moeda americana). Principal termômetro do apetite por negócios, o contrato de dólar futuro movimentou mais de US$ 18 bilhões, volume pouco usual para uma segunda-feira – o que sugeriria mudança no posicionamento dos investidores.

 

Para o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, o patamar do câmbio deve se acomodar à medida que os processos de decisão sobre gastos forem concluídos e o governo corrigir “ruídos” na sua comunicação. “Precisamos comunicar melhor os resultados econômicos que o País está atingindo.” Questionado sobre intervenção no mercado, respondeu que essa é uma atribuição do BC. “Eles lá é que sabem quando e como fazer, é um assunto que cabe a eles decidirem. Sempre é possível, porque está na governança do BC”.

 

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva voltou a criticar ontem o modelo de funcionamento do Banco Central. Ao defender a prerrogativa do presidente da República de escolher o chefe do BC, Lula afirmou que a reivindicação de maior autonomia à autarquia se deve à ação do “mercado”. “Quem quer o Banco Central autônomo é o mercado”, disse Lula em entrevista à Rádio Princesa, em Feira de Santana, na Bahia.

 

Os ataques de Lula aos juros altos e ao Banco Central não são novidade, mas ele subiu o tom nas últimas duas semanas, quando começou um sequência de entrevistas a rádios pelo País. E essas investidas passaram a ser vistas por analistas do mercado como um indício de que o presidente vai interferir nas decisões do BC assim que seu indicado assumir o comando do órgão, após o fim do mandato de Roberto Campos Neto – o primeiro presidente do BC com mandato e autonomia definidos por lei, que deixará o cargo em dezembro.

 

Na entrevista à Rádio Princesa, ontem, Lula associou Campos Neto de novo ao governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL). “O Banco Central tem que ser de uma pessoa que seja indicada pelo presidente. Como é que pode um presidente da República ganhar as eleições e depois não poder indicar o presidente do Banco Central? Eu estou há dois anos com o presidente do BC do Bolsonaro. Então, não é correto”, reclamou, acrescentando: “O que não dá é o cidadão ter um mandato e ser mais importante do que o presidente da República. É isso que está equivocado”.

 

Na sequência, disse ter “paciência” para “esperar a hora” de indicar um novo presidente do BC. “Vamos ver se a gente consegue, com a maior autonomia possível e decência política das pessoas, ter um presidente do BC que olhe o Brasil como ele é e não do jeito que o sistema financeiro fala.”

 

‘Fiscal fraquejou’

 

O diretor de Organização do Sistema Financeiro e Resolução do Banco Central, Renato Gomes, disse ontem que a responsabilidade fiscal é a perna do tripé macroeconômico que “mais fraquejou” até agora. Desde 2009, quando o País começou a ter dificuldades para entregar superávits primários consistentes, a política fiscal tem sido “no mínimo inconstante”, afirmou.

 

“Ela (política fiscal) sofre de, vamos dizer assim, uma crônica falta de credibilidade, e isso reflete em grande parte os resultados desapontadores que nós tivemos em muitos desses anos”, disse ele, em uma live do BC para comentar os 30 anos do real. Sem credibilidade da política fiscal, acrescentou ele, o custo de se levar a inflação para a meta fica mais elevado.

 

O diretor do BC também afirmou que é necessário fazer com que a política fiscal se torne mais contracíclica, isto é, seja expansionista quando a economia está fraca e contracionista quando a atividade cresce com mais vigor. (O Estado de S. Paulo/Victor Ohana, Sofia Aguiar, Antonio Perez, Luis Leal e Fernanda Trisotto)