O retorno do carro popular

O Estado de S. Paulo

 

A indústria automobilística tem procurado o governo para sugerir propostas que auxiliem no resgate do vigor que o setor já teve no passado. Uma das possibilidades mencionadas é estimular a renovação da frota, indenizando proprietários de automóveis antigos e poluentes para retirá-los de circulação. Outra ideia é retomar a produção de veículos menores, mais simples e menos equipados, conhecidos como “carros populares”. A ideia é inserir essas medidas no contexto dos planos que visam à reindustrialização do País.

 

Ao longo do século 20, as montadoras foram fundamentais na conversão de uma economia eminentemente rural para a de um país industrializado. A primeira fábrica foi inaugurada em 1919, mas foi na década de 1950 que a consolidação da indústria automotiva tornou-se parte de um plano de governo. Além dos empregos que geraram, as fábricas trouxeram consigo fornecedores de autopeças e uma rede de fornecedores de serviços. De forma indireta, as montadoras estimularam a construção de rodovias e a atividade das empreiteiras. Para ficar em um único exemplo, elas mudaram a realidade do ABC Paulista, berço político do presidente Lula da Silva.

 

Na década de 1990, outras fabricantes aproveitaram a abertura do mercado para também se instalarem no País. Como suas antecessoras, elas souberam fazer bom uso de seus atributos. A despeito da baixa produtividade, foi assim que a indústria automobilística brasileira se manteve por anos: valendo-se de apoio estatal, proteção contra a concorrência externa e ferrenha guerra fiscal entre os Estados.

 

A tentativa mais recente de manter essa pujança foi o Rota 2030. O programa trouxe algumas evoluções no que diz respeito à legislação de emissões, reduzindo a tributação de motores mais econômicos e menos poluentes para estimular carros elétricos e híbridos. O programa ampliou também os critérios mínimos de segurança veicular e o rol de itens obrigatórios a serem incorporados.

 

Como era de esperar, essa legislação provocou profundas mudanças na dinâmica do setor. O conjunto de novas exigências inviabilizou a produção de carros populares e elevou o preço mínimo dos veículos de entrada a quase R$ 70 mil, excluindo os consumidores de menor poder aquisitivo desse mercado. É muito improvável que essa tenha sido a intenção do governo e do Congresso ao propor e aprovar o Rota 2030. Isso não invalida o programa, mas certamente reforça a importância de elaborar políticas públicas com muito cuidado, avaliar seus resultados de forma periódica e, inclusive, propor revisões.

 

Nas últimas semanas, diversas montadoras anunciaram férias coletivas para reduzir estoques superiores a 40 dias. Mas o fato é que essa situação não é pontual. Desconsiderando os efeitos da pandemia de covid-19, as vendas de veículos novos estão praticamente estagnadas desde 2020, em torno de 2 milhões de unidades por ano.

 

Ao defender a volta do carro popular, o presidente da Federação Nacional da Distribuição de Veículos Automotores (Fenabrave), José Maurício Andreta Júnior, disse que o mercado precisa de escala para girar e gerar rentabilidade, o que é impossível em um mercado dominado por carros mais caros. Assim, conhecendo o histórico das administrações petistas, a indústria rapidamente começou a se mobilizar junto ao governo para encontrar formas de baratear os automóveis e propor ações para reduzir os impostos, os itens de segurança essenciais e o custo de crédito.

 

Independentemente do resultado dessas reuniões, não se pode perder de vista que são medidas defendidas pela própria cadeia da indústria automobilística e que nada têm a ver com uma agenda ambiental ou com a reindustrialização do País. Parece evidente que o setor tem um problema, o que não necessariamente quer dizer que caiba ao Estado resolvê-lo. Em vez de mais uma vez privilegiar segmentos viciados em subsídios e apoiar tecnologias ultrapassadas a um custo elevadíssimo para o contribuinte, criar uma política industrial consistente e indiscriminada, com vistas a promover um crescimento sustentável e uma economia verde, deveria ser o verdadeiro foco do governo. (O Estado de S. Paulo)