A crise não precisa ser um caos

O Estado de S. Paulo

 

A pandemia de coronavírus, que já infectou centenas de milhares de pessoas e causou dezenas de milhares de mortes no mundo, não pode ser comparada a nenhum outro evento enfrentado pelo ser humano. Epidemias anteriores, pestes, gripe espanhola, nenhum desses tristes fatos teve a característica mais marcante da atual pandemia: a disseminação de informação.

 

Vivemos imersos em tecnologia e informações. O acesso a todo tipo de notícia, declaração, boato é quase imediato em todos os setores da sociedade. Cabe às autoridades manter a qualidade das informações para evitar pânico, levando a ações que ajudem efetivamente a lidar com a crise.

 

A classe médica tem a responsabilidade não só de tratar e fazer o possível para salvar, mas também de orientar a população. Esta, por sua vez, deve ouvir a comunidade médica e as autoridades. Observando os exemplos de países onde a doença chegou antes, o Brasil tem não somente a vantagem do tempo, mas também de poder aplicar soluções que se provaram eficazes e aperfeiçoar sua estratégia de enfrentamento.

 

As medidas planejadas passam por três fases.

 

A primeira é a de contenção. Adotou-se a quarentena quando necessário, além de todas as medidas de higiene, descontaminação e prevenção. Essa fase é a mais propícia à disseminação de fake news e de pânico: muitas pessoas dizendo coisas diferentes deixam a população confusa.

 

A segunda fase é de retardo do contágio. Estamos nela, em situação de transmissão comunitária. É impossível parar completamente a disseminação do vírus, especialmente num país com as dimensões e as características únicas do Brasil. Nesta fase, a abordagem é a de desacelerar a velocidade de contaminação, por meio da quarentena e do isolamento social, além dos casos de herd immunity – pessoas saudáveis, quando expostas ao vírus, adquirem imunidade.

 

Por fim, a terceira fase do plano de contingência é a de mitigação. Nesse momento, o papel dos gestores terá ainda mais destaque, pois será necessária a realocação de recursos para atender o máximo possível de pacientes infectados. Por isso a importância, hoje, de suspender consultas e cirurgias eletivas: leitos de UTI devem estar disponíveis para esses casos. E não apenas isso. O número possível de leitos comuns deve ser transformado em leitos de UTI. A amplitude e a velocidade do contágio pelo coronavírus já provaram que esses leitos serão necessários.

 

A adoção de tais medidas pela população e a observância do plano de contingência em todas as esferas são fundamentais para que o número de vítimas no Brasil seja reduzido. A população também precisa ter consciência de que atitudes tomadas em razão de informações equivocadas – ou mesmo mentirosas – têm consequências. Já estamos vendo o desabastecimento de hidroxicloroquina, por exemplo, devido a anúncios de que seria um tratamento contra o coronavírus. Por causa disso, pacientes portadores de lúpus, que realmente precisam do medicamento, estão ficando sem, comprometendo seu tratamento e sua vida, e até mesmo prejudicando pesquisas que confirmem sua eficácia.

 

Ao mesmo tempo, em contraste, vemos notícias sobre ações altruístas e humanitárias que mostram o que o ser humano tem de melhor. Vendo famílias se unirem, vizinhos se ajudarem, desconhecidos engajados em apoiar uns aos outros, os médicos se fortalecem em sua missão de salvar vidas – seja na linha de frente, na pesquisa científica ou nas políticas de saúde.

 

Nesse sentido, a sociedade civil organizada deve estar atenta, prestando a assistência e as orientações necessárias. A situação é preocupante, aguda, grave, mas estamos minuto a minuto observando as necessidades apontadas para adoção das melhores estratégias.

 

É claro que pandemia, quarentena, estado de calamidade pública são termos e expressões que assustam. Não fazem parte do nosso dia a dia e a maioria de nós jamais imaginou passar por situação semelhante. Nem em casos memoráveis, como na tragédia da boate Kiss, em 2013, tivemos uma alteração tão grande na realidade dos serviços de saúde públicos e particulares. E com a diferença de que, agora, a escala é planetária.

 

O que nos cabe, na situação do Brasil, é planejar, estabelecer e acatar as melhores medidas possíveis. No momento, com a colaboração da sociedade, ainda temos chance de achatar a curva de crescimento da pandemia. A experiência de outros países serve como estudo para que adaptemos nossos esforços à realidade brasileira, tão singular em diversos aspectos.

 

A única coisa absolutamente certa desse quadro em que nos encontramos é que nada será igual depois que a crise passar. Nada escapará ileso – a medicina, os médicos, a economia, a sociedade como um todo. Resta repensarmos a humanidade enquanto grupo, enquanto comunidade, todos juntos e igualmente vulneráveis. Mas também igualmente fortes, se soubermos usar nosso potencial com racionalidade e coragem e, acima de tudo, evitando cair na armadilha do desespero e do caos.

 

Ainda temos chance de achatar a curva de crescimento da pandemia. (O Estado de S. Paulo/Eduardo Neubarth Trindade, doutor em medicina, presidente do Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio Grande do Sul – CREMERS)