Varejo e indústria em descompasso

O Estado de S. Paulo

 

Pela visão mais otimista, o consumo continuou vigoroso e o varejo se acomodou em patamar elevado, em dezembro, depois de sete meses de crescimento. Além disso, o aumento das vendas completou três anos consecutivos. Em 2019, a comercialização de comida, roupas, calçados, eletrodomésticos, medicamentos e outros artigos da pauta básica de consumo foi 1,8% maior que a de 2018. Com a inclusão de veículos, partes e peças e material de construção, o aumento chegou a 3,9%. Este foi o desempenho do chamado varejo ampliado. Com esses números, pode parecer consolidada a recuperação iniciada em 2017, depois de dois anos de recessão. A imagem de acomodação em patamar elevado foi usada pela gerente de pesquisa Isabella Nunes, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), para explicar o recuo mensal de 0,1% do varejo restrito e de 0,8% do ampliado. O avanço em três anos seguidos “confirma a atividade do comércio como vetor de aceleração da atividade econômica”, acrescentou a gerente.

 

Que o comércio tenha sido o setor de crescimento mais firme entre 2017 e 2019 está fora de dúvida. Mas seu papel como “vetor de aceleração” tem sido menos que brilhante. No primeiro ano depois da recessão, o Produto Interno Bruto (PIB) cresceu 1,3%, resultado repetido em 2018. O número do ano passado ainda é desconhecido, mas a estimativa mais divulgada está em torno de 1,1%. Se isso se confirmar, o desempenho terá sido inferior ao de 2017 e 2018.

 

Além disso, onde se manifestou esse efeito de aceleração? A produção industrial cresceu 2,5% em 2017, avançou 1% em 2018 e caiu 1,1% no ano passado, segundo o IBGE. No trimestre final de 2019 o produto da indústria continuava 18% abaixo do pico registrado em maio de 2011. A reação do consumo proporcionou algum impulso à atividade industrial, principalmente nos dois primeiros anos de retomada, mas a expansão do varejo está longe de sinalizar uma efetiva reativação econômica.

 

Dentro do conjunto da indústria, a de transformação ainda conseguiu crescer 0,2% em 2019. No acumulado de 12 meses, foi o primeiro resultado positivo desde maio. O segmento de bens de consumo produziu 1,1% mais que no ano anterior, refletindo alguma melhora no emprego e os estímulos ao consumo oferecidos a partir de setembro.

 

Combinados todos os pontos positivos, as apostas no desempenho da indústria em 2020 continuam modestas e cautelosas. A mediana das projeções do mercado subiu de 2,19% para 2,21% em quatro semanas, segundo a última pesquisa Focus publicada pelo Banco Central (BC). Considerando-se a base muito baixa, esse crescimento, se confirmado, ainda será pouco significativo.

 

A crise argentina ainda continuará limitando as exportações brasileiras de produtos industriais, mas os principais entraves à expansão do setor são mesmo internos. O baixo poder de competição internacional e a escassa integração nas cadeias globais de valor dão uma ideia desses entraves ou, mais precisamente, das fraquezas do setor. Há dúvidas, no entanto, sobre a real condição da indústria, embora seja indiscutível seu baixo dinamismo. Algumas dessas dúvidas – sobre a dimensão da capacidade ociosa, por exemplo – apareceram na ata da última reunião do Comitê de Política Monetária, formado por diretores do BC.

 

Num ambiente de baixo investimento, a indústria continua dependendo quase exclusivamente do impulso dado pelo consumo. Sobre esse ponto há uma nova dúvida, manifestada por analistas do mercado: haverá estímulo suficiente, se o recuo do varejo em dezembro indicar mais que uma acomodação temporária?

 

Divulgadas as vendas, alguns economistas falaram sobre a possibilidade de rever as projeções econômicas para 2020. Podem ter sido precipitados, mas seria prudente a equipe econômica dar um pouco mais de atenção à indústria e ao dia a dia da atividade econômica.

 

Consumo tem alguma reação, mas a indústria continua operando com baixo dinamismo. (O Estado de S. Paulo)