A culpa é só do imposto?

UOL Economia

 

Será que os carros seriam mesmo mais baratos no Brasil se os impostos diminuíssem? Ana Theresa Borsari, diretora-geral da Peugeot no país – a única mulher a dirigir uma montadora aqui e a primeira da Peugeot no mundo todo -, diz que sim, em entrevista na série UOL Líderes.

 

Ela fala sobre a dificuldade que o brasileiro tem para comprar um carro, mudanças na indústria por causa da onda de compartilhamento, preconceito contra carros, mulheres no comando, subsídios ao setor e preferências do consumidor.

 

Por que carro é tão caro?

 

UOL – Carro no Brasil é caro. Será que os preços cairiam de verdade se os impostos fossem reduzidos, como as montadoras sempre argumentam?

Ana Theresa Borsari – A carga tributária no Brasil é totalmente desproporcional e diferente do que existe nos outros lugares do mundo. Isso é objetivo, não sou eu que estou dizendo. E isso faz com que o modelo de negócio para as montadoras no Brasil fique muito difícil.

 

Não precisa dizer que os preços dos carros são decorrência dessa carga tributária desproporcional. O que aconteceria numa ruptura completa de tributação? É lógico que os preços cairiam, porque o nosso setor é um setor de volume. Os custos de concepção são elevados, e, para amortizar esses custos, dependemos de volume.

 

À medida que haja cargas tributárias menores, o interesse das montadoras é amortizar esses custos de concepção no maior volume possível. E dessa maneira equalizaríamos os preços para atender à maior demanda possível.

 

Por que preço você gostaria de vender um carro de entrada da Peugeot?

Eu não sei a questão de preço, porque até o preço é relativo ao poder aquisitivo da população. Vou dar um exemplo: uma pessoa que trabalhe na mesma função na Europa e vem aqui no Brasil comprar um carro precisa de um esforço financeiro seis vezes maior. Eu só queria que ele tivesse aqui o mesmo esforço que tem na Europa.

 

Se isso é por meio da baixa de preço ou do aumento do poder aquisitivo tanto faz, acho que o mais importante é isso. O que já vem acontecendo de certa forma, porque a baixa da taxa de juros e a inflação sob controle fazem com que as pessoas voltem a fazer seus financiamentos e ter acesso a bens de valor agregado maior.

 

Mas o que a gente quer não são populações endividadas, são pessoas que tenham acesso a bens de consumo de maior valor sem necessariamente fazer um esforço financeiro tão elevado.

 

Subsídios dados à indústria automobilística foram muito criticados. Foram subsídios demais?

Que o setor é estratégico para a economia é indiscutível, ele carrega outras indústrias, como autopeças. São centenas de milhares de empregos que estão por trás. De uma certa forma, o poder público precisa regular de maneira que esse setor subsista de maneira forte, porque ele abarca grande parte da economia.

 

Os subsídios foram importantes, e a industrialização local traz tecnologias mais modernas para o setor. Acredito que tudo que traga benefícios para o consumidor é bom a médio e longo prazos. Temos de ver o longo prazo.

 

Tem havido muitos recalls na área automobilística. Na sua avaliação, é preocupante?

Eu sinceramente não sinto um aumento. Fiquei fora do Brasil entre 2009 e final de 2015, e pode ser que tenha acontecido algum problema nesse período. Mas desde quando cheguei, em relação ao que era antes de 2009, não senti um aumento expressivo ou que me chamasse a atenção.

 

Acho, sim, que existe uma regulamentação vinda do Código de Defesa do Consumidor (CDC), ao qual sou superfavorável. Eu trabalhava no Procon quando estavam promulgando o CDC, fui a Brasília fazer lobby e ajudei de uma certa forma a construir o código. Acho que aqui existe uma organização de proteção ao consumidor que funciona muito bem, não vejo muita diferença até do que acontece na Europa.

 

As fraudes ambientais envolvendo algumas montadoras deixaram as empresas do setor como um todo com uma imagem negativa?

Ainda não. Aqui no Brasil acredito que os consumidores ainda não têm um olhar atento a isso. Mesmo na Europa, onde se fala muito em proteção ambiental e redução de emissões, está muito mais voltado às políticas estatais do que à própria demanda do consumidor.

 

O que acaba regulando o mercado é o quanto de imposto é cobrado numa determinada situação de poluição. Isso é benéfico para a sociedade, e eu não sou contra, pelo contrário. No caso da PSA grupo que reúne as marcas Peugeot e Citroën, fizemos o teste com organismos independentes e ganhamos o prêmio Eco Best.

 

Acho que o poder público está certo, vai ter que regular mesmo e ir para a direção certa, para a gente proteger o nosso planeta.

 

Indústria não sobreviverá sendo só montadora

 

UOL – A cultura de compartilhamento, em que muitos deixam de possuir individualmente um bem, é uma ameaça para a indústria de carros?

Ana Theresa Borsari – No caso da nossa empresa, foi visto como uma grande oportunidade. Nosso presidente mundial comprou várias start-ups de sharing [compartilhamento] pelo mundo. A maneira que enxergamos o futuro é que uma empresa do setor não tem como sobreviver sendo exclusivamente uma montadora de automóveis. Ela tem de ser um provedor de serviço de mobilidade.

 

Prover serviço de mobilidade será o grande modelo de negócio futuro. E é lógico que, quando ofereço serviço de mobilidade, eu tenho uma vantagem competitiva se eu ainda fabrico o produto que vem por trás. Acredito nessas duas pernas de negócio, que vão jogar diferentes papéis no futuro.

 

Vai ser mais importante o negócio de provimento de carros do que o de fabricação?

Sim, quando você olha de maneira prospectiva para 30, 40 anos, sem dúvida alguma, porque a gente percebe quais coisas mudam de valor, vão perdendo valor. A utilização compartilhada está ganhando. Sendo a referência na prestação de serviço de mobilidade, você dá um passo à frente.

 

Na Europa e nos EUA, há vários carros híbridos ou totalmente elétricos, o que não acontece aqui. Vamos ficar atrasados nisso?

Depende de como a política pública vai evoluir. No caso da Peugeot, nossas novas plataformas até 2023 vão ser todas multicombustível. Ou seja, a ideia é oferecer uma paleta ampla de tipos de combustível para que cada fábrica possa regular o seu mix segundo a demanda da política pública do seu país.

 

No caso da Europa, nas cinco principais cidades europeias, até 2020, não se entra mais com carros térmicos motores a combustão nos centros. As montadoras estão compelidas a ir nessa direção. O que é bom.

 

 

Vocês têm uma previsão de até quando vão existir carros com motor de combustível fóssil?

 

Depende do que vai acontecer nas diferentes regiões do mundo, porque cada uma delas está indo por um caminho distinto. Por isso que é difícil para uma montadora com presença mundial dizer que 100% dos carros serão elétricos. Há diferentes políticas públicas nas diversas regiões do mundo.

 

Notadamente a China e toda essa região asiática, onde os mercados são gigantescos, mas as políticas públicas não vão necessariamente para essa mesma direção. Então é difícil dizer qual vai ser a velocidade com a qual a gente vai conseguir engajar todas as regiões em torno desse mesmo propósito.

 

Preconceito do brasileiro contra marcas

 

UOL – O mercado brasileiro tem preconceitos contra algumas marcas de carros?

Ana Theresa Borsari – Todo mercado acaba formando suas próprias ideias sobre diferentes marcas. Não vejo nada no Brasil de particular em relação a outras partes do mundo, só mudam as marcas e o tipo de visão. O que acontece no Brasil é que o brasileiro ama automóvel, e o automóvel para o brasileiro tem uma dimensão muito maior do que em outros países europeus, até porque o esforço financeiro para a aquisição de um automóvel no Brasil é muito maior do que lá fora.

 

Então, é muito mais relevante esse nível de investimento para a cabeça do brasileiro, e ele tem no automóvel ainda um símbolo de status, de realização pessoal. Ele quer demonstrar pelo veículo qual status ocupa.

 

Carros franceses são vistos de maneira diferente no Brasil em relação a Argentina e Uruguai, por exemplo, onde são mais presentes?

Acho que a imagem tem a ver com a história. A Peugeot está presente na Argentina há 70 anos, então possui uma história quase centenária lá, e tem uma história bastante recente no Brasil [primeira fábrica aqui é de 2000]. Então é claro que a imagem tem a ver com a história e o período vivido naquele país.

 

Você concorda com a imagem, comum no mercado brasileiro, de que os carros franceses, Peugeot e Citroën são preferidos pelas mulheres?

Talvez no passado, especificamente no caso do C3 ou talvez do 206, ainda poderia. Mas hoje em dia, acho que não. Isso já acabou, e não tem muito a ver com a nacionalidade da marca, acho que tem mais a ver com o perfil do produto e das pessoas que gostam e acabam se apaixonando por eles.

 

O que acontecem nos nossos carros é que são mais equipados, e as mulheres gostam de níveis de equipamentos mais elevados. Talvez venha daí esse perfil de gosto feminino.

 

Os homens não ligam para esses detalhes?

Vem acabando essa coisa de o que o homem gosta ou a mulher gosta. É mais o perfil mesmo da pessoa que está comprando. Hoje em dia na nossa sociedade não existe mais essa diferença. Antigamente se falava de fazer uma série especial feminina, mas essa coisa já está ultrapassada.

 

Por que os homens não gostariam de comodidades?

Acho que era mais preconceito do homem de dizer que gostava desse tipo de coisa, porque no fim das contas todo mundo gosta de conforto, todo mundo gosta de acesso à tecnologia. Acho que a oferta e essa onda de carros mais modernos, produtos mais modernos, que chegou ao Brasil, é muito positiva.

 

Pouco a pouco o homem vai passando a ter menos vergonha de dizer que gosta de ter acesso ao conforto, isso também vai evoluindo.

 

Que características tem o consumidor brasileiro?

A principal tem a ver com o nosso jeito de ser, somos emocionais. O perfil de compra de qualquer produto no Brasil é mais emocional. O brasileiro tem também que se apaixonar de certa forma pelo produto. Por mais que a gente ache que, nos momentos de crise a compra se torne mais racional, o que vale é ele se apaixonar ou não por aquele produto.

 

O que mais faz o brasileiro se apaixonar por um carro?

Pesquisas de perfil de compra de carro não mudam muito há 25 anos. O brasileiro se apaixona pelo design. Se o carro for feio, ele pode até comprar, mas depois se arrepende, mesmo sendo o melhor carro do mundo. Então, o carro tem que ser bonito. Design é a primeira razão de compra principalmente do automóvel entre homens, mulheres, jovens, mais velhos, de qualquer classe social, de qualquer perfil de compra.

 

E agora, mais recentemente, sem dúvida alguma é o nível de equipamentos, que é uma coisa relativamente recente. Antigamente era vidro e trava elétricos. Hoje em dia a oferta de equipamentos de tecnologia faz com que isso seja levado em conta na razão de compra.

 

Será que o consumidor brasileiro está se sofisticando? 

Sem dúvida alguma. Não sei se é falta de sofisticação, eu acho que a oferta também era pobre. Existia o conceito – não só de carros, mas de forma geral – de que os produtos vinham para cá mais simples, e mesmo assim vendiam. Isso acabou totalmente.

 

O brasileiro hoje está 100% conectado, superdigital, mais do que em qualquer outro lugar do mundo. Estando conectado, quer ter acesso ao que existe de mais moderno e tecnológico para qualquer setor e em qualquer produto. Isso lógico que é favorável para a Peugeot.

 

Mas o brasileiro é conservador em cor de carro, por exemplo. A Peugeot ousa mais.

Um pouco mais, mas bem menos do que na Europa. A gente é superconservador aqui no Brasil, e acho que ficou ainda mais conservador de uns tempos para cá. Acho que antes de eu sair não era tanto, está ainda pior.

 

Você vê o cenário automotivo, você sai na rua e vê que é tudo cinza, prata, preto, branco. Há principalmente um conservadorismo nos interiores dos carros. Na Europa, trabalha-se muito o interior, com detalhes coloridos. Aqui não se pode muito ousar no interior. A gente trabalha bastante carros esportivos com interiores mais claros na Europa. Aqui é muito raro você ver isso.

 

Esse conservadorismo não é contraditório com o gosto por design? Seria medo de desvalorização ao revender?

Acho que tem esse mito da revenda, de ser difícil revender um carro muito exótico. Mas não só, acho que é gosto mesmo. Às vezes a gente faz teste, e a pessoa entra e já acha muito claro. Ela não fala que não gostou porque não vai conseguir revender. Ela fala que não gostou do claro.

 

Será que um carro com muitas comodidades não é visto como mais “fraco”?

Acho que a robustez não tem mais a ver com o luxo e com o nível de equipamento, e a grande ruptura foi no próprio segmento das picapes.

 

Porque esse segmento é ícone do veículo robusto e talvez hoje seja um dos mais luxuosos do mercado, com todo nível de equipamento, de luxo e de conforto possível para os ocupantes.

 

Mulher deve expor ambição no trabalho

 

UOL – É difícil ver uma mulher dirigente na indústria automobilística. Quais as vantagens e as dores?

Ana Theresa Borsari – Costumo dizer que as mulheres não é que têm mais obstáculos, elas se colocam no mundo profissional de uma maneira diferente do que os homens. As mulheres exercem excelentes trabalhos operacionais, muito performantes, mas expõem menos a sua ambição profissional.

 

No meu caso, foi uma história similar. Entrei na Peugeot há quase 25 anos e pude dirigir praticamente todas as áreas da empresa antes de ter um percurso internacional, mas jamais me impunha e expunha a minha ambição de maneira notória, como fazem os homens. As mulheres são mais tímidas nisso.

 

Por isso é que agora, tendo feito isso e tendo tido sucesso na minha carreira, eu incentivo muito as mulheres a exporem de maneira mais efetiva sua ambição profissional. Nunca uma mulher havia sido presidente da operação de um país na Peugeot, por exemplo. Nunca na história da marca no mundo.

 

E eu já era diretora de várias áreas aqui havia dez anos. Fui conversar com o diretor mundial na época e disse: “Faz dez anos que dirijo todas as áreas da empresa, estou pronta e quero assumir a presidência de um país”. Na hora, ele tomou um certo choque, não era natural para ele vindo de uma mulher.

 

Foi só fazendo isso que tive a oportunidade de ser a primeira mulher no mundo na Peugeot a assumir a presidência da operação de um país na Eslovênia. Então, não existe outra maneira de chegar lá que não seja, sim, executando bom resultado, mas expondo sua ambição de um modo mais objetivo.

 

Na prática, o que você mudou no processo de produção por causa do olhar feminino?

Ter um “olhar feminino”, naquilo que a gente acha que é mais feminino na definição piegas, é a visão masculina do olhar feminino. O verdadeiro olhar feminino é aquele que, primeiro, pensa em cada detalhe. A mulher sabe olhar numa sala e olhar cada detalhe, ver o que não funciona.

 

Então, a gente modificou bastante a organização das concessionárias, tanto no show room quanto na recepção de oficina, digitalizando e tornando mais visível, um ambiente mais clean e agradável de se ficar. E isso não é necessariamente o olhar feminino, mas é a forma de se encarar mesmo a coisa.

 

Essa preocupação com os mínimos detalhes é o que realmente permeia a minha gestão. Costumo dizer aqui que, se eu tivesse que definir a gestão, seria uma perna na coerência e outra num nível de rigor e de exigência no mais alto, naquilo que você teria expectativa de entregar. A coerência que faz a verdadeira gestão, ser coerente com aquilo que você quer construir, seja com a rede de concessionárias e com os clientes finais.

 

O que fazer no começo de uma carreira de executivo?

Digo para os jovens aprendizes ou estagiários: sempre se comportem como se estivessem ocupando o cargo acima do de vocês. Se quero ser contratado, não vou me vestir como um estagiário, quero me vestir como um jovem contratado, quero me compor, trabalhar, produzir, entregar como jovem contratado, sempre visando o cargo futuro que eu quero ter.

 

Porque se eu for agir como estagiário e quiser ser contratado, sempre vou gerar dúvida na pessoa que vai me contratar. Como ele seria num cargo futuro? Se no posto atual você já demonstrar maturidade, produtividade, eficiência, isso fica mais fácil.

 

Muitas vezes sinto, principalmente nos jovens começando a carreira, aquela noção de que faz o dele, e uma hora alguém vai contratá-lo. Mas por quê? Se eu faço só o meu? Se eu mostrar que tenho condição de fazer mais, muito provavelmente quando a oportunidade aparecer é para mim que vão olhar.

 

Foi dessa forma que eu sempre agi. Se eu não tivesse agido assim, sendo mulher, brasileira, no meu setor, eu jamais teria tido essa carreira.

 

Sempre demonstrava que estava madura emocionalmente, com competência e técnica, pronta para ocupar o cargo seguinte. (UOL Economia)