Carplace
Essa reportagem nasceu há algum tempo, na apresentação à imprensa do Jeep Compass flex. E surgiu despretensiosamente, numa das boas conversas que às vezes temos a chance de ter com o pessoal das engenharias das fábricas. Neste caso, quem nos ajudou foram Erlon Castro Rodrigues, analista de engenharia avançada, e José Francisco Antonelli Júnior, engenheiro-chefe. Ambos da FCA. Enquanto nos contavam o trabalho que deu criar o 2.0 Tigershark flex, Antonelli e Rodrigues nos lembraram sobre o quanto é complicado criar um motor que funcione tanto com gasolina quanto com etanol.
“A primeira dificuldade é que cada combustível demanda condições diferentes de funcionamento. Enquanto com gasolina o motor funciona sob pressões de 80 bar, com etanol essa pressão sobe para 100 bar. Não é só uma questão de usar materiais que resistam à corrosão, já que nosso combustível é álcool hidratado e a água presente nele pode atacá-los, mas também de ter peças que resistam à pressão mais alta”, diz Rodrigues.
Antonelli cita que cada peça tem sua resistência avaliada por simulações de computador. As que não resistirem às novas pressões, normalmente pistões e bielas, precisam ser substituídas. Mesmo que elas passem nos testes feitos em computador, também são avaliados posteriormente em testes de bancada para ver se não houve nenhum detalhe que escapou. Se alguma peça não aguentar o tranco, o processo de verificação recomeça.
Não pense você que uma peça mais resistente automaticamente passa a integrar todos os motores daquela família. Especialmente se a fábrica não fica em um país que precise daqueles motores, mas sim de outros, com demandas menores. “A fábrica do 2,0 litros Tigershark fica em Saltillo, no México. É a mesma que produz os motores Hellcat. Só que esse motor também tem versão só a gasolina. Uma liga mais resistente à corrosão, como a que usamos no motor flex, é mais difícil de usinar. Por isso, ele leva mais tempo para ser fabricada, o que diminui o ritmo de produção. E um motor que leva mais tempo para produzir custa mais caro”, diz Antonelli.
Estes são aspectos para os quais a maioria dos “engenheiros de final de semana” não dão atenção ou dos quais nem têm conhecimento. Os mesmos que acham que motor bicombustível é a mesma coisa que flex. A diferença é que o primeiro usa um ou outro combustível de cada vez, enquanto o flex pode usar qualquer mistura dos dois. O que chega ao conhecimento público é o uso de bicos injetores de maior vazão, de mangueiras de Viton, que não sofrem com o etanol, de comandos de válvula que aguentem o combustível vegetal e por aí afora.
“Aí você imagina nossa aflição quando vemos aquelas soluções caseiras que convertem qualquer motor para usar etanol, como se fosse só uma mudança de software ou coisa parecida. Dá trabalho à beça deixar o motor capaz de um consumir qualquer um dos combustíveis com a durabilidade que uma peça dessas deve ter. O 2,0 litros Tigershark flex foi projetado para durar pelo menos 240 mil km. A gente sabe que, bem cuidado, um motor pode durar muito mais do que isso”, diz Rodrigues, lembrando do caso de Irv Gordon e seu Volvo de 3 milhões de milhas (4,8 milhões de km), que teve o motor refeito apenas duas vezes ao longo de toda essa quilometragem.
Quando você ouvir alguma conversa sobre conversões fáceis, especialmente em carros importados antigos, lembre-se dessa reportagem. E do esforço de caras como Rodrigues e Antonelli para entregar um motor que realmente funciona como deveria. Com qualquer um dos dois combustíveis que temos. (Carplace/Gustavo Henrique Ruffo)