O Nobel de Economia e a indústria de automóveis

Best Cars

 

Luiz Alberto Melchert, que estreia no Best Cars a coluna Carro, Micro & Macro, voltada a temas que envolvam Economia e o automóvel, é doutor em História Econômica pela USP, pós-graduado em Economia Internacional pela Columbia University e mestre em Economia pela PUC. Crescido em uma oficina de máquinas de terraplenagem, é consultor em Economia Agrícola há 30 anos e desenvolveu um completo sistema de controle de oficina. Amante da mecânica em geral e dos automóveis em particular, ainda busca o Mercedes-Benz 170 V de seu pai.

 

Foi a primeira vez desde o lançamento do prêmio Nobel que se dividiu o de Economia entre dois cientistas. O britânico Oliver Hart e o finlandês Bengt Holmström ganharam este ano por terem estudado a teoria dos contratos.

 

Tudo, desde que nascemos até morrermos, depende de contratos que nem sempre são feitos por nós, mas em nossos nomes. É o da maternidade em que nascemos, é o da agência funerária quando morremos. Nesse ínterim, presenciamos a confecção de inúmeros contratos que – por mais que não nos pareçam dizer respeito – nos afetam em maior ou menor grau. Isso acontece na indústria em geral e na de automóveis em particular.

 

Na verdade, há bens que dependem mais de contratos que os automóveis. Navios e aviões, por exemplo, são tão caros e tão dependentes de sua taxa interna de retorno que precisam ser produzidos e usados por muito tempo para se tornarem viáveis. Mas esses são contratos entre a indústria e seus consumidores finais. Quando os bens, mesmo duráveis, não dependem de ROI (return over investiment), o comportamento é diferente. Os contratos se dão ao longo da cadeia de suprimentos e o consumidor final não tem qualquer poder para intervenção. Resta aceitar e achar tão bom quanto o marketing da indústria conseguir convencê-lo.

 

Isso acontece com a indústria de automóveis porque o investimento em um novo projeto é tão elevado e tão dependente da formação de fornecedores para peças específicas, que não há como ocorrerem saltos tecnológicos significativos. Tomemos como exemplo a produção de engrenagens sinterizadas para transmissão. Sínter é um ponto antes da fusão: a cerâmica é sinterizada, enquanto o vidro é fundido. Pode-se sinterizar aço, bastando moê-lo até ficar tão fino que se torne impalpável, depois comprimi-lo formando um biscoito, que a seguir vai ao forno para adquirir rigidez.

 

Para eliminar a usinagem, fazem-se moldes de borracha com todos os dentes na posição correta. A seguir, a forma é cheia até virar uma bola (exagero semântico) e posta em uma prensa isostática, que exerce exatamente a mesma pressão em todas as direções. O biscoito já é uma engrenagem rígida o suficiente para ser manuseada que, ao ir ao forno, pela inexistência de tensões, encolhe proporcionalmente em todas as direções. A usinagem, se houver, será mínima.

 

Não é preciso grande esforço para imaginar o investimento envolvido em todo o processo. É um salto tecnológico? Sem dúvida que sim – e vem sendo usado desde a década de 1980. Pode ser aplicado a inúmeras peças de incontáveis materiais. Enquanto esse processo não se tornar economicamente inviável, permanecerá. O mesmo se pode dizer da maioria dos componentes dos automóveis. Isso ajuda a explicar a lentidão da evolução tecnológica na indústria automobilística.

 

Políticas protecionistas

 

Também são contratos que tornam tão lenta a migração do motor a combustão para a eletricidade. Mais de um milhão de postos de combustível empregam 15 milhões de pessoas e há toda uma indústria de filtros, aditivos e inúmeros itens ligados ao processo de abastecimento e manutenção. Não falamos da extração e do refino de petróleo porque ele continuaria a ser usado para produzir eletricidade.

 

Os acordos que redundam em políticas protecionistas não deixam de ser contratos, mas em âmbito muito mais amplo e muito menos visível. O Mercedes-Benz 170 V 1953 de meu pai já tinha limpadores de para-brisa elétricos, enquanto os do Chevrolet De Luxe 1951 de minha mãe eram a vácuo, como regiam as leis dos Estados Unidos. Aliás, o funcionamento no Chevrolet era no mínimo precário. Quando se ia ultrapassar um caminhão sob uma chuva torrencial na Serra de Santos, o limpador parava porque a borboleta do carburador estava totalmente aberta. Ao tirar o pé do acelerador, ele se agitava freneticamente. Toda a linha da GM durante os anos 50 usou essa solução.

 

Nosso FNM 2000 JK já usava pneus radiais Cinturato da Pirelli em 1960, mas nos EUA se usaram diagonais wide oval até o início dos anos 80, o que obrigava os proprietários de regiões com neve a manter dois jogos, um para inverno e outro para o resto do ano. Enquanto se popularizavam os faróis com lâmpada de iodo no mundo inteiro, as leis norte-americanas ainda impunham os selados (sealed-beam), cuja patente pertencia à GE – e aí voltamos ao parágrafo anterior.

 

Não é difícil imaginar o investimento que se fez para produzir aquela verdadeira obra de arte em vidro. No Brasil, onde não havia leis protetoras como nos EUA, tínhamos automóveis com faróis com lâmpadas, como Volkswagen e DKW-Vemag, ao passo em que os de origem norte-americana como Chevrolet e Ford herdaram os selados. Interessante é que a Cibié era um braço do grupo Studebaker-Wortington do Canadá.

 

Contratos podem ser substituídos por novos acordos, desde que haja alguém disposto a entrar no mercado e, de certa forma, desfazê-lo, seja tornando o produto obsoleto em parte ou por inteiro. A Tesla, por exemplo, está disposta a provocar uma revolução tecnológica do carro, enquanto a Google pretende alterar os anseios do consumidor. De qualquer forma, são novos contratos. E provavelmente mais eficientes do ponto de vista social, de modo a proporcionar aumento no bem-estar do consumidor.

 

Resta saber até quando e quanto custarão à sociedade e ao ambiente antes de serem substituídos. Os ganhadores do Prêmio Nobel apostam que os contratos tendem ao aperfeiçoamento da vida material da humanidade: que eles estejam certos e que estejamos vivos para ver isso. (Best Cars)