De novo a questão das máquinas

O Estado de S. Paulo/The Economist

 

Há algo de familiar no receio de que as máquinas acabem deixando todo mundo sem emprego, beneficiando apenas um grupo seleto de pessoas e pondo a sociedade de pernas para o ar. Há dois séculos, quando a industrialização começava a se disseminar pela Grã­Bretanha, essas preocupações rendiam discussões acaloradas. Naquela altura, não se falava em “revolução industrial”, mas na “questão das máquinas”. Inicialmente colocada pelo economista David Ricardo em texto de 1821, tal questão dizia respeito à “influência das máquinas nos interesses de diferentes classes da sociedade” e, em particular, à “opinião, comum entre a classe laboriosa, de que o uso de maquinário é amiúde prejudicial a seus interesses”. Escrevendo em 1839, o historiador e filósofo Thomas Carlyle denunciava o “demônio do mecanismo”, cujo poder desestabilizador resultava na “opressão de vastas multidões de trabalhadores”.

 

Pois a questão das máquinas voltou com toda a força, ainda que sob nova roupagem. Especialistas em tecnologia, economistas e filósofos agora discutem as implicações da inteligência artificial (IA), uma tecnologia em acelerado desenvolvimento, que permite às máquinas executar tarefas que antes só os humanos tinham condições de realizar. Seu impacto pode ser profundo. A IA põe em risco o emprego de pessoas cujas atividades pareciam impossíveis de serem automatizadas, de radiologistas a assistentes judiciários. Em estudo largamente citado, publicado em 2013, Carl Benedikt Frey e Michael Osborne, da Universidade de Oxford, mostram que, nos Estados Unidos, 47% dos empregos podem “dar lugar a capital computacional”. Mais recentemente, o Bank of America Merrill Lynch divulgou a projeção de que, até 2025, “o impacto desestabilizador criativo anual” da IA pode ficar entre US$ 14 trilhões e US$ 33 trilhões, incluindo: redução de US$ 9 trilhões em custos trabalhistas, possibilitada pela automação de funções antes desempenhadas por trabalhadores do conhecimento; reduções de custo num total US$ 8 trilhões na indústria e na saúde; e US$ 2 trilhões em ganhos de eficiência resultantes da utilização de carros autônomos e drones. Por sua vez, o McKinsey Global Institute diz que a IA vem contribuindo para uma transformação da sociedade que está acontecendo “dez vezes mais rápido e em escala 300 vezes maior, ou com impacto aproximadamente 3 mil vezes mais abrangente” que a Revolução Industrial.

 

Tal como aconteceu há 200 anos, muitos temem que as máquinas tornem milhões de trabalhadores dispensáveis, gerando desigualdade e problemas sociais. Martin Ford, autor de dois best­sellers sobre os perigos da automação, tem medo de que os empregos da classe média desapareçam, que não exista mais mobilidade econômica e que uma plutocracia endinheirada venha a “isolar­se em condomínios fechados ou em ‘cidades de elite’, possivelmente defendidas por robôs e drones militares autônomos”. Outros receiam que a IA represente uma ameaça existencial à humanidade, pois computadores superinteligentes talvez não compartilhem dos mesmos objetivos que os seres humanos, podendo se voltar contra seus criadores.

 

Esse tipo de apreensão vem sendo veiculada por gente como o físico Stephen Hawking. De maneira ainda mais surpreendente, até o empreendedor do setor de tecnologia Elon Musk, que fundou a companhia de foguetes SpaceX e a montadora de carros elétricos Tesla, ecoa Carlyle e adverte que, “com a inteligência artificial, estamos evocando o demônio”. Os automóveis Tesla usam as mais avançadas tecnologias de IA para se conduzirem a si mesmos, mas Musk teme que no futuro a IA se torne poderosa demais para que os humanos consigam controlá­la, passando a ser dominados por ela. “Não tem problema se você tiver um Marco Aurélio como imperador. Mas a coisa muda de figura se for um Calígula”, diz ele.

 

A todo vapor. Essas preocupações são motivadas por avanços impressionantes que vêm acontecendo na IA, uma área até outro dia famosa por inúmeras promessas não concretizadas. “Nos últimos dois ou três anos, a coisa explodiu”, diz Demis Hassabis, CEO da startup de IA DeepMind, que o Google comprou em 2014 por US$ 400 milhões. No início deste ano, o sistema AlphaGo, desenvolvido pela empresa, derrotou Lee Sedol, um dos melhores jogadores do mundo de Go – um jogo de tabuleiro extremamente complexo, que não se esperava que os computadores conseguissem dominar, senão daqui a no mínimo dez anos. “Por muito tempo eu olhava para a IA com ceticismo, mas agora o avanço é real. Os resultados são reais. A coisa funciona mesmo”, diz Marc Andreessen, do fundo de capital de risco Andreessen Horowitz, do Vale do Silício.

 

Em particular, uma técnica de IA chamada “aprendizagem profunda” (deep learning), que possibilita que os sistemas aprendam e se aperfeiçoem por meio do processamento de grande número de exemplos, em vez de terem de ser explicitamente programados, já vem sendo empregada para potencializar mecanismos de buscas na internet, bloquear e­mails indesejados (spams), sugerir respostas a emails, traduzir páginas da web, reconhecer comandos de voz, detectar fraudes em cartões de crédito e conduzir carros autônomos. “É espetacular”, diz Jen­Hsun Huang, presidente e CEO da NVIDIA, cujos chips municiam muitos sistemas de IA. “Em vez de os softwares serem programados por pessoas, são os dados que fazem isso”.

 

Onde alguns veem perigo, outros enxergam oportunidades. Os investidores já fazem fila para entrar no pedaço. Gigantes de tecnologia vêm comprando startups de IA e competem entre si para atrair os melhores pesquisadores da área. Em 2015, segundo a empresa de análise de dados Quid, foram gastos US$ 8,5 bilhões em companhias de IA; um valor recorde, quase quatro vezes superior ao total gasto em 2010. Também em 2015, o número de rodadas de investimento em startups de IA foi 16% maior que em 2014, ao passo que o setor de tecnologia como um todo registrou queda de 3%, diz Nathan Benaich, do fundo Playfair Capital, que tem 25% de sua carteira investida em IA. É como se o modelo de negócios padrão das startups, nos últimos tempos centrado na universalidade potencial do conceito do Uber (“Uber for X”), tivesse dado lugar à noção de que tal universalidade é ainda mais potencializada com a IA (“X plus IA”). Google, Facebook, IBM, Amazon e Microsoft tentam estabelecer ecossistemas em torno de serviços de IA oferecidos em nuvem. “Essa tecnologia será utilizada em praticamente todos os setores que mexem com algum tipo de dado”, diz Richard Socher, fundador da MetaMind, uma startup de IA recentemente adquirida pela gigante de computação em nuvem Salesforce. “A IA vai estar em toda a parte”. (O Estado de S. Paulo/The Economist/Traducido por Alexandre Hubner)