Os carros 100% nacionais e a terceirização do risco

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Há poucos dias um amigo colecionador entrou em contato pedindo minha opinião sobre a aquisição de um Gurgel BR-800: entusiasta de modelos nacionais, ele ficou surpreso quando soube que minha simpatia pelo pequeno carrinho ruiu há alguns anos, quando tive a experiência nada memorável de guiar um exemplar em razoável estado de conservação.

 

Mesmo sabendo que se trata de carro para coleção, não recomendei a aquisição: automóveis foram feitos para rodar e isso o BR-800 faz de uma maneira sofrível. Faltam ergonomia, ventilação e acerto entre o motor Enertron bicilíndrico e a caixa de câmbio de apenas quatro marchas: é garantia de muito barulho e pouco desempenho. Mesmo assim, o amigo manteve o interesse no pequeno carrinho, que apesar de desconfortável é muito carismático – há uma legião de admiradores Brasil afora, enaltecendo suas virtudes e fazendo de tudo para mantê-lo rodando. Ter um Gurgel na garagem desperta um ufanismo jamais visto entre proprietários de Pumas, Engesas e outros ícones brasileiros.

 

É pena que parte desse orgulho se deva ao famigerado vitimismo que assola boa parte dos brasileiros: muitos ainda enxergam o excelentíssimo engenheiro João Gurgel como uma vítima do poderoso lobby das multinacionais aqui instaladas, mesmo sem serem capazes de assumir que o próprio Gurgel nunca manifestou tais lamúrias – pelo menos não em público.

 

O Cena era a materialização do Tião, quase 40 anos depois de sua rejeição: uma empresa cujo futuro dependia de retrocessos técnicos e produtivos

 

Como bom empreendedor, Gurgel foi senhor de seu próprio destino. O pequeno mecânico de bicicletas cresceu e formou-se engenheiro pela Escola Politécnica de São Paulo. Idealizou um pequeno carro popular antes de concluir a graduação, o Tião, com arquitetura típica da década de 1940: motor dianteiro e tração traseira. A recusa do projeto como trabalho de conclusão do curso na Poli tornou-se um desafio pessoal para Gurgel: ávido por conhecimentos, o engenheiro fez uma escala no General Motors Institute, aceitando receber um salário de estagiário. De volta ao Brasil, ingressou na Ford e fez amizade com “Bobby” Schultz-Wenk, o alemão que trouxe a Volkswagen ao País.

 

A amizade rendeu bons frutos: 10 anos depois, João apresentava o Gurgel 1200 no Salão do Automóvel de 1966. A versão Xavante apareceu no estande da Macan Ltda., do próprio João, ao passo que a versão Enseada foi orgulhosamente exibida no estande da Volkswagen, responsável por chassi, motor e câmbio. Bem sucedida, a parceria culminou com a Gurgel Veículos em 1969.

 

João ia muito bem: mudou-se da capital para a até então tranquila Rio Claro, no interior paulista, produzindo e exportando seus utilitários com mecânica VW. Mas ele queria mais: o fim da produção do Fusca em 1986 soou como a oportunidade perfeita para o desenvolvimento de um automóvel genuinamente nacional, tão simples, barato e adequado às necessidades do Brasil quanto o besouro.

 

Foi uma verdadeira aposta: com apenas 2,9 metros de comprimento, peso de 450 kg, um motor bicilíndrico de 650 cm³ e tração traseira, o Cena (Carro Econômico Nacional) era a materialização do Tião, quase 40 anos depois de sua rejeição. O anacronismo de sua proposta era simplesmente paradoxal: uma empresa cujo futuro dependia de vários retrocessos técnicos e produtivos. João tentava justificar sua crença no atraso: para ele, a tração dianteira era inviável em virtude do elevado custo dos pneus radiais e das juntas homocinéticas, componentes incompatíveis com um automóvel rústico e popular, projetado para as massas. Uma visão distinta de um gênio da engenharia, chamado André Lefèbvre.

 

Pupilo de Gabriel Voisin e egresso da Renault, Lefèbvre foi contratado por André Citroën pouco antes de seu falecimento, em 1935. Afundada em dívidas, a empresa foi assumida pela Michelin, sua maior credora. Sob o comando de Pierre-Jules Boulanger, sua estratégia era incontestável: um automóvel popular capitalizaria a empresa e, de quebra, aumentaria a demanda por pneus.

 

Para tanto, nada melhor que um veículo simples, barato e adequado às necessidades da França: assim surgia o lendário 2CV, com seu motor à frente das rodas dianteiras, também responsáveis pela tração (como no igualmente lendário Traction Avant). Seu rodar macio e suave era resultado da notável suspensão independente de Marcel Chinon. Outro recurso interessante do 2CV eram os novos pneus radiais desenvolvidos pela Michelin: boa parte de seu comportamento dinâmico se devia à nova tecnologia, responsável por verdadeira evolução na superfície de contato dos pneus com o solo. A união Michelin-Citroën foi responsável por inúmeros avanços da indústria automobilística.

 

Carro errado no momento errado

 

Honesto e competente, o 2CV durou 42 anos – seu carisma fez dele um dos símbolos da França, ainda hoje cultuado. Quando o último foi produzido em 1990, o BR-800 (evolução do projeto Cena, agora com motor de 800 cm³ por padrão) ainda engatinhava: a carroceria de plástico e fibra de vidro era incompatível com a produção em larga escala e a transmissão por eixo cardã minava seu rendimento. Era simplesmente o carro errado no momento errado: centralizador, João Gurgel ficou conhecido pela personalidade teimosa e refratária, evidenciada por várias de suas posições, em especial em relação ao álcool combustível. Avocou para si inúmeras responsabilidades, como a de empreendedor, engenheiro e designer. O resto é história.

 

Basta lembrar que o concorrente do BR-800, pouco depois de seu lançamento, foi o Fiat Uno Mille: um automóvel idealizado por Giorgetto Giugiaro, com toda a tecnologia elaborada por décadas de trabalho de Dante Giacosa, Carlo Salamano, Aurelio Lampredi e Vittorio Valletta, entre outros talentos gerenciados pela família Agnelli. Um trabalho de equipe, sem lugar para decisões monocráticas.

 

Sempre afirmei que a Gurgel quebrou sozinha, mesmo com os revezes impostos pela administração pública. A última esperança do engenheiro foi depositada num maquinário oriundo da Argentina: tudo indica que o velho João finalmente se renderia à tração dianteira, fabricando transeixos usados no país vizinho pelo Citroën 3CV, versão local do 2CV. Mesmo que tivesse concretizado a empreitada, Gurgel continuaria investindo no atraso: a produção argentina do 2CV havia sido encerrada em 1980, oito anos antes da produção francesa. Há até quem diga que ele recusou a tentadora proposta de um fabricante estrangeiro: não simpatizava com a ideia de perder a autonomia sobre o próprio nome.

 

Os ufanistas ainda hoje lamentam o fato de o Brasil ter uma empresa do porte da Embraer e nenhuma no ramo automobilístico: ignoram completamente a iniciativa governamental que antecedeu sua fundação, incluindo a parceria tecnológica firmada com a alemã Focke-Wulf. Tanto que as primeiras vendas comerciais só vieram em 1979, 10 anos após sua fundação.

 

Se a situação não foi promissora para um engenheiro que conhecia um mínimo de produção industrial, o que dizer de um empreendedor completamente alheio ao assunto? Foi o caso de Nelson Fernandes na década de 1960, quando decidiu criar a Indústria Brasileira de Automóveis Presidente (IBAP). A IBAP foi fundada numa época em que as pessoas ainda faziam negócios dando como garantia o fio do bigode, ou seja, baseadas apenas na honestidade, integridade, lealdade e respeito. Foram muitos os incautos que transformaram suas economias em capital de risco, viabilizando a realização do sonho de um automóvel 100% nacional.

 

A única garantia de Fernandes estava em seus empreendimentos anteriores, nenhum ligado à atividade industrial. Seu primeiro produto foi o Democrata, um sedã com motor traseiro muito semelhante ao Chevrolet Corvair de 1960, tanto sob o aspecto técnico quanto pelo estilo. Uma empresa misteriosa, na qual muitos depositaram sua confiança.

 

Hoje qualquer investidor faz uma análise minuciosa antes de investir seu suado dinheiro em uma empresa de capital aberto, como contabilidade e quadro de gestores. Oficialmente, o que se sabe a respeito da IBAP é que em meados da década de 1960 a empresa nem sequer tinha balanço patrimonial ou qualquer dado formalizado capaz de garantir sua operação. Deu no que deu: os investidores nunca tiveram qualquer retorno e todas as medidas tomadas para evitar que novos interessados fossem prejudicados foram interpretadas como “campanha difamatória”. O folclore automotivo brasileiro fala até em mancomunação entre o governo e as multinacionais aqui instaladas: um prato cheio para os teóricos da conspiração.

 

Quando ainda residia em São Bernardo do Campo, SP, há 20 anos decidi visitar as ruínas da antiga fábrica da IBAP: sob o teto em frangalhos restava um amontoado de carcaças, mas nada que lembrasse uma linha de montagem. Nem mesmo o sistema de produção carrossel, adotado por João Gurgel na fábrica de Rio Claro, que conheci anos mais tarde.

 

Além de vender sonhos, Gurgel e Fernandes também pecaram no desenvolvimento do produto: quem andou no único Democrata que ainda roda relata que a experiência é tão ruim quanto a do BR-800. Ou tão ruim quanto a do Emme Lotus 422T, fruto de uma aventura industrial promovida por uma empresa que nem figura pública tinha: a Megastar.

 

Residindo em Pindamonhangaba, SP, dessa vez foi o editor Fabrício Samahá quem descreveu as instalações da fábrica na mesma urbe: as dimensões modestas do empreendimento eram incompatíveis com a produção de um automóvel, ainda que artesanal. Uma greve tratou de anunciar que ali se fabricavam apenas autopeças. A promessa de um projeto 100% nacional se resumia a uma carroceria de plástico injetado apoiada sobre uma estrutura tubular (quanta originalidade…). Enquanto o Democrata almejava ser um dos sedãs mais rápidos do Brasil, o 422T queria ser o mais rápido do mundo: 0 a 100 km/h em cinco segundos e velocidade máxima de 273 km/h. O BMW M5 que se cuidasse!

 

Apresentado no evento Brasil Motor Show de 1997 e no ano seguinte no Salão do Automóvel, o 422T atraiu a atenção do público e o dinheiro dos incautos: a Megastar encerrou suas atividades em 1999. Dessa vez não surgiram teorias conspiratórias: ninguém sentiu saudades do acabamento precário, da ausência de bolsas infláveis ou freios com sistema antitravamento (ABS) e da dirigibilidade, tão sofrível quanto a de seus precursores “100% nacionais”.

 

Curiosamente, o melhor vendedor de sonhos do Brasil viveu uma experiência mais bem-sucedida: Eike Batista. A busca por um veículo capaz de atender às necessidades de seus empreendimentos fez com que ele produzisse em Pouso Alegre, MG, o JPX, uma versão do jipe A3 idealizado pela francesa Auverland. Expressivo em qualidades e defeitos, o JPX foi um verdadeiro fracasso comercial: estima-se que menos de 3.000 unidades foram produzidas de 1994 a 2001, acumulando prejuízos estimados em dezenas de milhões de dólares.

 

O próprio Eike percebeu que uma indústria automobilística não é empreendimento para aventureiros: nenhuma teoria da conspiração é capaz de amenizar o risco da atividade. (Best Cars)