O Estado de S. Paulo
Com a aprovação do projeto de desoneração da folha, que permite ao Tesouro contabilizar como receita primária R$ 8,6 bilhões “esquecidos” em instituições financeiras, divergência entre Banco Central e Fazenda sobre o déficit fiscal do País chega a R$ 39,7 bilhões no período de 12 meses, até julho, a maior da história.
O projeto da desoneração da folha de pagamentos, aprovado pelo Congresso semana passada com o aval do governo, reforçou as divergências entre Banco Central e Ministério da Fazenda sobre o tamanho do rombo fiscal. Em meio às incertezas com o rumo das contas públicas, especialistas alertam para a perda de transparência e credibilidade em relação ao resultado primário do País (saldo entre receitas e despesas) que serve de parâmetro para a verificação da meta fiscal.
O texto da desoneração, que aguarda a sanção do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), permite que o Tesouro Nacional contabilize como receita primária – ou seja, computada para a meta – os valores esquecidos por pessoas e empresas em contas de instituições financeiras, como bancos, corretoras e cooperativas. São R$ 8,6 bilhões a mais no cofre do governo, valor que não será considerado pelo BC no seu cálculo de resultado primário. Pelo arcabouço fiscal, porém, a verificação da meta é atribuição do BC.
Tesouro e BC sempre tiveram metodologias distintas para aferir esse resultado. A grande questão é que essa diferença deixou de ser residual e vem se aprofundando. No acumulado em 12 meses até julho, o rombo calculado pelo BC é R$ 39,7 bilhões maior que o aferido pela Fazenda. Em valores corrigidos pela inflação, essa discrepância chega a R$ 41,1 bilhões – a maior diferença da história, segundo levantamento do economistachefe da Tullett Prebon Brasil, Fernando Montero. Procurado, o Tesouro não se manifestou.
‘Problema grande’
Boa parte dessa divergência é explicada pelos R$ 26 bilhões deixados por trabalhadores nas cotas do PIS/Pasep, que foram incorporados pelo Tesouro em setembro do ano passado.
Na ocasião, o governo contabilizou essa cifra no resultado primário, melhorando o dado fiscal de 2023. Isso ocorreu com o respaldo do Congresso, por meio da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) da Transição, aprovada no fim de 2022. Esses valores, no entanto, não foram computados como receita primária pelo BC, levando a uma diferença expressiva nos números apurados pelos dois órgãos.
A diferença atual de quase R$ 40 bilhões ainda inclui cerca de R$ 8 bilhões de ajuste metodológico em relação às compensações aos Estados pela redução do Imposto sobre Circulação de Mercadoria e Serviços (ICMS) e discrepâncias estatísticas mensais – que sempre existiram.
“Isso cria um problema grande de apuração (da meta) e de credibilidade sobre o conjunto de regras fiscais que a gente tem”, diz Gabriel Barros, economista-chefe da ARX Investimentos e ex-diretor da Instituição Fiscal Independente (IFI), órgão ligado ao Senado Federal.
Mais do que reforçar as incertezas em relação às contas públicas, o que chama a atenção dos analistas é que o Ministério da Fazenda, ao sustentar o seu número de déficit primário, vai na contramão do que diz a lei do arcabouço fiscal, de que o cálculo da meta é de responsabilidade do Banco Central. Isso, na visão dos especialistas, pode trazer o Tribunal de Contas da União (TCU) para o centro do debate, com o objetivo de arbitrar a questão.
“Fica uma dúvida gigante. Ninguém sabe como vai ser apurado (o resultado primário). Certamente, o TCU vai ter de entrar na jogada. Criaram um imbróglio jurídico, de como vai ser feita a apuração. O arcabouço diz claramente que o cumprimento é feito pelo dado divulgado pelo BC”, afirma Gabriel Barros, da ARX Investimentos.
Questionado pelo Estadão, o TCU informou que ainda não “examinou formalmente” a aprovação do projeto de lei da desoneração, mas ponderou que a questão “poderá ser analisada futuramente, seja por provocação ou por iniciativa do tribunal durante os trabalhos de acompanhamento da gestão fiscal”.
O TCU informa, ainda, que se preocupa em garantir não apenas o cumprimento da legislação vigente, “mas também a adoção das boas práticas de contabilidade pública e de estatísticas fiscais, conforme padrões internacionalmente aceitos”. E que, caso necessário, adotará os procedimentos para informar a questão ao Congresso Nacional e ao Poder Executivo.
O resultado primário é apurado com base na diferença entre receitas e despesas, sem considerar os juros da dívida pública. Ou seja, é o número que determina se o governo fechou o ano no azul ou no vermelho e se cumpriu ou não a meta estabelecida pela equipe econômica.
Novos valores
“O (resultado) primário serve para avaliar como está sendo o desempenho da administração pública para conseguir reduzir a sua dívida a partir da política fiscal, se (ela) está sendo expansionista demais, contracionista demais, se está investindo nos lugares certos”, ressalta João Pedro Leme, analista da consultoria Tendências.
Ao longo dos próximos meses, o valor de R$ 26,6 bilhões originário do Pis/Pasep sairá do montante acumulado em 12 meses, uma vez que foi computado em setembro passado, e a discrepância entre Tesouro e BC, assim, tende a diminuir. Novos valores, porém, devem voltar a elevar essa diferença, como é o caso dos recursos esquecidos nas instituições financeiras, transferidos contabilmente pelo projeto da desoneração aos cofres do Tesouro.
Redação ajusta
Às vésperas da aprovação do projeto da desoneração na Câmara, o BC enviou uma nota técnica aos deputados esclarecendo que a incorporação desse montante bilionário no cálculo primário das contas públicas estava “em claro desacordo com sua metodologia estatística”. Pressionados, os parlamentares aprovaram uma nova redação para o texto, que desobriga o BC de computar esse valor.
Mesmo assim, o projeto autoriza o Tesouro a considerar esses valores na conta e ainda vai além: diz que eles serão “considerados para fins de verificação do cumprimento da meta”.
“É uma decisão esdrúxula. O BC não vai contabilizar como primário, mas o Tesouro vai e o que contará, para a meta, será o dado do Tesouro. Claramente um gol de mão sem direito a VAR”, compara Marcos Mendes, pesquisador do Insper.
Mendes também considera que a medida, em si, é questionável. “Está tirando recursos privados (esquecidos nas contas bancárias), que têm dono, e transferindo ao Tesouro de uma forma que me parece açodada. Parece um movimento de quebrar todos os cofrinhos que estão disponíveis para fechar a conta”, diz.
“É uma decisão esdrúxula. O BC não vai contabilizar como primário, mas o Tesouro vai, e o que contará, para a meta, será o dado do Tesouro. Claramente um gol de mão sem direito a VAR”, Marcos Mendes pesquisador do Insper.
Busca da meta
A preocupação do governo com o valor computado para fins de cumprimento da meta fiscal não é uma mera formalidade. Esse número será determinante também para a equipe econômica saber o quanto terá de dinheiro para gastar em 2026, ano de eleição presidencial.
O governo se comprometeu com uma meta de déficit primário zero em 2024 e 2025, e propõe alcançar um superávit de 0,25% do Produto Interno Bruto (PIB) em 2026.
Se descumprir esse objetivo, o Planalto será obrigado a acionar uma série de gatilhos de corte de despesas no último ano de mandato do presidente Lula, às vésperas do pleito presidencial. É essa conta que está sendo feita pelas alas política e econômica do governo, em meio a manobras no Congresso e sob o escrutínio do mercado financeiro. (O Estado de S. Paulo/Luiz Guilherme Gerbelli e Bianca Lima)