O Estado de S. Paulo Online
Deslizando sobre transportadores robóticos, uma linha de chassis da Ferrari manobra em meio a uma nova fábrica reluzente no norte da Itália. Em cada estação, engenheiros em uniformes vermelhos adicionam um componente — um bloco de motor, um painel, um volante — enquanto transformam os corpos em veículos híbridos. O próximo passo: totalmente elétricos.
Muito está em jogo na planta de € 200 milhões da Ferrari, que entrou em operação no mês passado e é quase duas vezes maior que o Coliseu de Roma. Com a fábrica, a fabricante de carros esportivos de 77 anos, conhecida pelo sonoro ronco de seus motores a gasolina, planeja entrar na era da eletrificação.
Mas o esforço vem em um momento delicado para a indústria automobilística. A transição para veículos elétricos, que deveria rapidamente inaugurar uma era de transporte amigo do clima, tem sido pressionada por investimentos caros e pela desaceleração da demanda global.
Outros fabricantes de carros de luxo têm lutado para ir para o elétrico. Mercedes-Benz e Lamborghini reduziram suas ambições. A Tesla reportou uma queda nas vendas no segundo trimestre na terça-feira, e a Ford Motor disse em abril que mudaria a produção para mais híbridos, à medida que as perdas com veículos elétricos se acumulavam. Uma crescente guerra comercial entre a China e o Ocidente também ameaça sufocar o crescimento.
Apesar dos desafios, a Ferrari vê uma oportunidade inevitável com a guinada da indústria em direção à eletrificação para alcançar um novo consumidor: o ambientalista rico. A empresa planeja lançar seu primeiro modelo totalmente elétrico no quarto trimestre do próximo ano. Como parte de sua estratégia, a fabricante de automóveis recrutou a LoveFrom — a agência fundada por Jony Ive, ex-chefe de design da Apple, e o designer industrial Marc Newson — para aperfeiçoar a aparência do veículo.
Há muito mistério envolvendo o carro ainda sem nome, incluindo sua autonomia de bateria e o som que fará. A empresa não divulgou sua aparência, produção ou preço. Mas, segundo analistas, ele pode ser um dos veículos elétricos mais caros do mercado, superando o Taycan Turbo GT, da Porsche, que custa US$ 286 mil (R$ 1,6 milhão).
A incursão da Ferrari no mundo dos elétricos será notável por outros motivos. Reguladores podem estar incentivando os veículos elétricos, mas ainda há ceticismo persistente no mercado. Conquistar os fãs de motores a combustão não será fácil — nem mesmo para a Ferrari. E a indústria está desesperada por um fabricante de automóveis, qualquer fabricante, que prove que veículos elétricos podem gerar grandes lucros.
“Vale a pena observar se um veículo elétrico da Ferrari pode manter o tipo de prêmio de preço que você associaria a uma Ferrari”, disse Martino de Ambroggi, analista automotivo da Equita, um banco de investimentos em Milão. “Muitas vezes, a compra de uma Ferrari também é vista como um tipo de investimento. Apenas depois de alguns anos veremos se esse investimento em uma Ferrari elétrica se mantém.”
Benedetto Vigna, CEO da Ferrari, está fazendo o possível para manter o mercado em expectativa. Em uma entrevista no mês passado na nova fábrica, ele disse que a empresa iniciará a produção em larga escala de veículos elétricos no começo de 2026. Até 2030, carros elétricos e híbridos representarão até 80% da produção anual da Ferrari, enquanto a empresa busca atender às rigorosas exigências de emissão da União Europeia.
Enquanto isso, a companhia lançará dois modelos: o SF90 Stradale, um híbrido plug-in, e o Purosangue, com motor a combustão.
A Ferrari não precisa de um veículo elétrico para melhorar seus resultados financeiros. Sob a liderança de Benedetto Vigna, ex-executivo da fabricante de chips STMicroelectronics que assumiu o comando há quase três anos, a empresa tem apresentado um desempenho excepcional. A ação é uma das de melhor desempenho na Europa neste ano, dando à empresa uma avaliação de mercado de aproximadamente US$ 75 bilhões (R$ 410 bilhões), superior à da Ford ou da General Motors. Os lucros estão disparando assim como os preços da Ferrari, que fabrica alguns dos carros mais caros do planeta. Há uma lista de espera de três anos para alguns modelos.
O sucesso da Ferrari ao longo dos anos na pista de Fórmula 1 também levou a um lucrativo negócio de patrocínios corporativos e mercadorias, transformando-a em uma marca de luxo com um toque esportivo. O logotipo do cavalo empinado da Ferrari pode ser encontrado em roupas de alto padrão, como um suéter de caxemira de € 790 (R$ 4,7 mil).
Vigna vê o veículo elétrico como parte da estratégia de crescimento da empresa, apesar da desaceleração da indústria. “Existem potenciais clientes, tenho-os claramente em mente, que nunca se tornarão parte da família a menos que haja um carro elétrico”, disse ele.
Mas desafios estão por vir. Entusiastas que se reuniram do lado de fora dos portões da fábrica no mês passado se perguntavam: Ele terá a aparência, a dirigibilidade e o som do rugido clássico da Ferrari ou terá o sussurro discreto da maioria dos veículos elétricos?
“Quando se pensa em um Ferrari, ainda se tem essa sensação de motor, e também se pensa no rugido”, disse Ambroggi. “Eu não sei como a Ferrari vai resolver isso.”
Vigna enfrenta essa pergunta com frequência, especialmente de clientes de longa data. Eles parecem estar canalizando o fundador falecido, Enzo Ferrari, que certa vez explicou de forma simples como construiu alguns dos carros mais rápidos do planeta: “Eu construo motores e os conecto às rodas.”
A abordagem de veículo elétrico de Vigna tem um tom diferente. “O motor elétrico não será silencioso”, disse ele. “Existem maneiras de garantir que a emoção transmitida ao dirigir um Ferrari elétrico seja a mesma que ao dirigir um híbrido.”
A vida útil da bateria é mais uma peça do quebra-cabeça. Como as Ferraris frequentemente são vendidas por preços mais altos no mercado secundário, a preocupação com a degradação da bateria e seu impacto no valor a longo prazo do carro pode ser sentida de forma mais aguda.
“A transição para veículos elétricos levanta muitas novas questões para eles em termos de como manter o veículo”, disse Stephen Reitman, analista automotivo da Bernstein.
Parceira de longa data da Ferrari, a SK On, fabricante sul-coreana de baterias, fornecerá os componentes dos veículos elétricos que a Ferrari montará na planta onde também produzirá motores elétricos e eixos dos carros.
E então há a questão do preço. No mês passado, a Reuters informou que o carro custaria pelo menos € 500 mil (cerca de R$ 3 milhões). Vigna rebateu as especulações, dizendo que ainda é cedo para falar sobre preço.
A Ferrari ainda segue o princípio de seu fundador de produzir um número limitado de carros extremamente caros. A empresa fabricou menos de 14 mil unidades no ano passado; mesmo com a nova fábrica, não se espera um aumento significativo na produção inicialmente.
Os números limitados podem explicar por que os fãs fazem peregrinações a Maranello na esperança de avistar uma Ferrari, seja na pista de testes de Fórmula-1 da empresa ou perto de sua fábrica de tijolos vermelhos.
Sabendo que a demanda é alta, Vigna aumentou o preço base da maioria dos modelos em mais de 25%.
“A Ferrari consistentemente vende menos do que o mercado demanda, o que leva a um livro de pedidos de vários anos”, disse Reitman, analista da Bernstein. Com uma margem de lucro de quase 30%, o negócio da Ferrari se assemelha mais ao de uma marca de luxo como Hermes ou Rolex, afirmam os analistas.
Vigna já está pensando em como comercializar o novo carro elétrico. O cliente-alvo provavelmente não estará comprando o carro por razões puramente práticas ou até mesmo pela salvação do planeta, disse ele, acrescentando: “A parte emocional do cérebro está impulsionando a compra”. (O Estado de S. Paulo Online/Bernhard Warner)