Com globalização em crise, indústria se volta para fornecedor local

O Estado de S. Paulo

 

Começam a surgir no País os primeiros sinais de mudanças nas cadeias de abastecimento da indústria, provocadas pelo choque da pandemia e da guerra. A disparada da inflação global, a interrupção no fluxo de mercadorias e a alta do frete estão levando a indústria a investir na verticalização da produção ou a buscar mercados de menor risco para instalar novas fábricas. O movimento deixa de lado o modelo tradicional de globalização e aposta na regionalização.

 

Desde 2020, o que se vê na indústria de eletroeletrônicos, eletroportáteis, informática, autopeças e motocicletas, é o avanço de projetos para produzir localmente itens importados, sobretudo da China.

 

A tendência já apareceu na Zona Franca de Manaus. Em 2020, a Suframa aprovou 142 projetos industriais; em 2021, foram 176; e a perspectiva é fechar este ano com 198 (alta de 39,43% ante 2020), diz o coordenador de projetos do órgão, Marcelo Pereira.

 

Neste ano, 36% dos projetos são de novas fábricas e o restante é de novos produtos. “Há sinalização de que mais empresas irão produzir bens finais e componentes na Zona Franca”, diz Pereira. Ele pondera que, depois de aprovado, o prazo é de até três anos para o projeto entrar em operação.

 

Neste ano, mais de um terço dos projetos (34%) é de companhias que estão chegando ao Brasil – a maior marca em cinco anos –, e a maioria das empresas é da China. Mas há da Índia, dos EUA, do Japão e do Peru. “Muitas querem tirar parte da produção, hoje concentrada em um só continente.”

 

O Brasil, segundo especialistas, aparece na lista dos destinos com maior chance de integrar o novo modelo de regionalização, ao lado de México, Vietnã e Austrália. O País é favorecido pela matriz energética limpa, pela capacidade de abastecer a América Latina e por não ter conflitos geopolíticos.

 

“Com a guerra comercial entre EUA e China, as placas tectônicas se moveram e, depois, com a pandemia, as empresas perceberam que não dá para produzir num lugar que só é mais barato”, diz Pedro Renault, economista do Itaú. Para Rafael Cagnin, economista-chefe do Iedi, com a pandemia, ficou claro que o peso do risco de ruptura precisa ser maior nas estratégias das empresas.

 

Outro sinal da regionalização apareceu na demanda por máquinas importadas pelas indústrias. “Este ano, vamos crescer as vendas entre 8% e 12% e seguimos batendo recordes a cada mês”, afirma Paulo Castelo Branco, presidente da Associação Brasileira dos Importadores de Máquinas e Equipamentos Industriais.

 

Hoje, o prazo de entrega de máquinas é de 180 dias, o dobro do normal. O aquecimento das vendas ocorre porque as empresas estão demandando mais máquinas para produzir localmente manufaturados. “É um começo de reindustrialização”, afirma.

 

Brasil, México, Vietnã e Austrália estão entre os que mais podem lucrar com a regionalização Indústrias dos setores automotivo, de motocicletas, eletrodomésticos, implementos rodoviários, móveis, eletroeletrônicos e embalagens têm liderado, nos últimos tempos, a compra de máquinas importadas para ampliar a produção local.

 

O setor automotivo, por exemplo, tem um grande projeto de atrair fabricantes de componentes que são importados principalmente da Ásia. Com a crise pela falta de semicondutores – que levou à paralisação de fábricas de veículos no mundo todo –, a indústria brasileira colocou todos os seus esforços nesses projetos para ficar menos dependente dos países daquela região.

 

A Stellantis, dona das marcas Fiat, Jeep, Citroën e Peugeot, desenvolve atualmente um projeto de componentes para o novo Citroën C3, que começou a ser produzido em sua fábrica em Porto Real (RJ). Segundo a empresa, já foram nacionalizados com fornecedores em Minas Gerais e São Paulo os itens alavanca de abertura do capô, mola a gás, kit de ferramentas, pedal de freio e berço motor, antes importados da Índia. O projeto continua, e novas peças passarão ser produzidas aqui, como componentes de suspensão.

 

Emprego

 

No setor de eletroportáteis, a Mondial, por exemplo, acelerou a nacionalização em 2020. Passou a fabricar no Brasil ferro elétrico, airfryer, multiprocessador e caixa acústica, antes importados da China. Com isso, criou mais de mil empregos na fábrica em Conceição do Jacuípe (BA).

 

“Era algo que estava previsto para fazermos em quatro anos e fizemos em um”, afirma Giovanni Marins Cardoso, sócio-fundador da empresa, líder do segmento no País. Com a pandemia, diz ele, aumentaram os custos e a dificuldade de trazer esses eletroportáteis da China, e a opção foi produzir no Brasil. Com a fabricação local, a empresa ganhou agilidade para atender à demanda. “Se a venda no varejo vai bem, a fábrica daqui começa a produzir mais itens no dia seguinte, mas, se dependermos da importação da China, uma nova remessa demora entre 90 e 120 dias para chegar.”

 

Para viabilizar a produção doméstica dos quatro eletroportáteis, foram investidos em um ano e meio R$ 80 milhões em máquinas e equipamentos. “Dobramos o nosso parque de injetoras e desenvolvemos fornecedores locais de resistência elétrica, termostato e embalagens”, conta. A companhia planeja uma nova rodada de nacionalização para fabricar localmente secador de cabelo, escova secadora, aspirador de pó e cafeteira. “O setor (de eletroeletrônico) passa por uma profunda transformação porque esse modelo de globalização tornou vulnerável a indústria do mundo inteiro”, diz Humberto Barbato, presidente da Associação Brasileira da Indústria de Elétrica e Eletrônica.

 

Comércio

 

Enquanto a indústria ensaia substituir importações, a estratégia do varejo para driblar a alta de preços e problemas logísticos foi trocar parceiros comerciais. Um estudo feito pelo economista-chefe da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo, Fabio Bentes, que comparou quantidades médias importadas de 3,7 mil bens de consumo de janeiro a outubro, entre 2012 e 2019, antes pandemia, com o mesmo período entre 2020 e 2022, revela que houve troca de países fornecedores.

 

As quantidades importadas de parceiros comerciais tradicionais do Brasil, como EUA, Países Baixos, França, Coreia do Sul, registraram quedas de dois dígitos na pandemia em relação ao período anterior.

 

Em contrapartida, foram ampliadas as compras de outros países, onde os preços recuaram, como Índia, Bélgica, Portugal, Turquia, Vietnã.

 

Na lista dos parceiros comerciais com maiores crescimento de volumes em período pós pandemia aparecem também os vizinhos Peru e Paraguai, além do Chile. “Os parceiros comerciais mais próximos do Brasil estão ganhando força”, observa Bentes, enfatizando que o processo de substituição de importação leva tempo. (O Estado de S. Paulo/Márcia de Chiara e Luiz Guilherme Gerbelli)