Precisamos trabalhar com o próximo governo para reindustrializar o Brasil

Isto É Dinheiro

 

Executivo do grupo Stellantis diz que entraves burocráticos, trabalhistas e econômicos retiram R$ 1,5 trilhão anualmente das empresas. Para ele, Estado deve atuar na mudança desse cenário para evitar que o País perca ainda mais competitividade – e que casos como o da Ford, cuja produção nacional foi encerrada em 2021, não se repitam.

 

O executivo Márcio de Lima Leite está no setor automobilístico desde 2000, quando entrou para o então Grupo Fiat. A companhia mudou de nome, primeiro para Fiat Chrysler Automóveis (FCA), depois para Stellantis, quando houve a fusão com a Peugeot e Citroën (PSA), mas ele só mudou de sala. Há pouco mais de dois meses, o executivo assumiu o comando da Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea) em meio a um cenário de queda nas vendas e na produção de automóveis no Brasil. E a situação do setor pode se complicar, segundo ele, caso o governo federal não implemente medidas para reduzir o Custo Brasil, conjunto de dificuldades estruturais, burocráticas, trabalhistas e econômicas que, segundo ele, retira R$ 1,5 trilhão por ano das empresas, encarece os preços dos produtos nacionais, prejudica a competitividade e compromete os investimentos no País.

 

Dinheiro – Por que a indústria automotiva mundial tem enfrentado tantos problemas?

Márcio de Lima Leite – Os últimos anos ficaram marcados como os mais desafiadores da indústria. No cenário mundial existe hoje uma capacidade produtiva de 135 milhões de veículos, e a última revisão aponta para o consumo 80 milhões de veículos. Uma capacidade ociosa elevada [de cerca de 40%]. Tivemos uma mudança de rota tecnológica, marcada principalmente pela aceleração da eletrificação na Europa e nos Estados Unidos. Com a Ásia ainda tateando o que vai acontecer, mas também numa transição. E com o Brasil recuperando o seu mercado. Hoje estamos oscilando entre 2,1 milhões e 2,3 milhões de unidades produzidas. Já estivemos entre 3,7 milhões e 3,8 milhões, em 2013. Um mercado com grande desafio e hoje limitado pela questão dos semicondutores, a nossa palavra mágica.

 

A Anfavea fez na última semana uma revisão para baixo das previsões de produção (de 2,4 milhões para 2,3 milhões) e de vendas (de 2,3 milhões para 2,1 milhões) em 2022. O número pode voltar a ser revisado para baixo?

A questão dos semicondutores continuará a ser um problema para o crescimento até o primeiro semestre de 2023. Neste momento existem cinco fábricas paradas por causa disso. De quatro marcas. Mas até o mês passado estávamos com 20 dias de paralisação em média por montadora. A média atualizada para junho é de 18 dias.

 

O recorde histórico de 3,7 milhões de carros em um ano pode ser quebrado?

Sem dúvida. O Brasil tem quase 220 milhões de habitantes, um índice de motorização muito baixo, um envelhecimento acentuado da frota. Então tem tudo para retomar esse mercado. Mas vamos demorar pelo menos cinco, seis anos.

 

A alta da inflação nos últimos meses impacta diretamente nos juros que incidem nos financiamentos. A situação econômica do País é um entrave a mais para a retomada do crescimento?

Temos hoje uma limitação natural que é a de produção. Não fosse isso, em um segundo grau teríamos a questão da demanda. Porque quando você pensa em crédito o nosso setor tradicionalmente depende muito dele, inclusive pelas condições do País. Alguns anos atrás, de 60% a 65% das vendas eram feitas com crédito. Nos últimos meses houve uma rápida inversão. Hoje temos 60% de vendas à vista.

 

E o resultado…

Os bancos têm apresentado índice de aprovação mais baixo. Antes tínhamos aprovadas sete propostas para cada dez, depois passamos para seis e meio, seis. Hoje gira em torno de cinco e alguma coisa. Além disso, temos maior restrição em relação aos pedidos de garantia. São garantias mais robustas, menor prazo de financiamento e alta no per­centual de entrada.

 

Independentemente de quem sentar na cadeira de presidente em 2023, o que a indústria espera do governo federal?

Precisamos trabalhar com o próximo governo, seja qual for, para buscar alternativas para reindustrializar o Brasil. Perguntamos: por que exportar lítio em vez de baterias elétricas? Podemos atrair as nossas matrizes, as nossas plantas, para sentar à mesa junto desses fabricantes e tentar criar produção local. O que queremos como agenda é a reindustrialização. Isso é fundamental. Isso é primordial. Isso é urgente.

 

Algumas montadoras têm optado por produzir fora do País, por causa do custo Brasil. Até que ponto esse problema pode complicar a indústria brasileira?

Pegue o exemplo da capacidade instalada: 135 milhões de veículos para uma demanda global de 80 milhões. A diferença é que temos praticamente 30 brasis nessa disputa. De ociosidade. Então, precisamos trabalhar para trazer a industrialização para o Brasil ou então viraremos um ponto de importação, o que não é o perfil da nossa indústria. Temos 500 fornecedores de autopeças. Temos competitividade técnica e inovação. Hoje existem mais de 100 propostas relacionadas à redução do Custo Brasil.

 

Quais medidas devem ser adotadas pelo governo para que a produção e as vendas voltem a crescer?

Além de olhar o Custo Brasil, as prioridades são juros e carga tributária.

 

Isso deve afugentar do País mais montadoras, como ocorreu com a Ford e a Mercedes-Benz?

Cada montadora tem a sua estratégia. Algumas saem por uma questão de migração de produtos ou de concentração em uma determinada tecnologia que não possui. Mas uma coisa é certa: o Brasil é um país que tem como característica a produção local. Então, outras montadoras virão, novos investimentos estão vindo.

 

Sem uma política efetiva para o setor, ou a indústria como um todo, a desindustrialização pode aumentar?

Sim. Temos uma capacidade ociosa em relação à capacidade instalada no mundo. Todas estão querendo entrar no Brasil, como importação. Precisamos ter cuidado, ter competitividade, para não jogar para baixo esse mercado.

 

O que pensa sobre o caminho da eletrificação no Brasil?

A eletrificação no Brasil é uma realidade mais distante ou numa velocidade menor do que acontece principalmente na Europa. Aí a gente pergunta: isso é um atraso? Não. A gente tem que desmistificar essa questão. A eletrificação existe desde que o mundo é mundo. A combustão idem. Quem é o bad guy da história? Não é a combustão. O bad guy da história é a questão de emissões. E se temos uma tecnologia de combustão que é tão antiga quanto a eletrificação, temos uma base industrial forte, uma tecnologia forte e o veículo a etanol, que é tão verde quanto a eletrificação, não podemos imaginar que iremos para esse caminho da eletrificação apenas porque outras regiões estão indo.

 

Mas não há um risco nessa escolha?

Vejo que a velocidade da eletrificação no Brasil será compatível com aquilo que a gente tem por aqui e em uma proporção muito menor do que acontece na Europa.

 

O fato de montadoras seguirem caminhos opostos em relação à eletrificação pode dificultar a implementação no País?

Temos o híbrido a etanol que é fantástico. Temos o etanol que também é fantástico. Temos saída, coisa que outros países não têm. Não é um processo em que chegaremos a ser totalmente elétricos. Mas deixar de existir a combustão é uma coisa distante da nossa realidade.

 

Montadoras como a BYD e a Caoa Chery se movimentam para produzir carros eletrificados no Brasil. É a porta de entrada para que outras empresas as sigam?

É ótimo e que assim seja, porque queremos montadoras produzindo no Brasil, gerando tecnologia, enraizando tecnologia e gerando conhecimento, o maior ativo que podem deixar.

 

Qual a sua opinião em relação à formação de grupos na indústria automotiva, casos da Stellantis (Fiat, Jeep, Citroën e Peugeot, entre outras) e da Aliança (Renault, Nissan e Mitsubishi)? É uma tendência ou uma questão de sobrevivência?

Acho que as duas coisas. Qual é o limite para isso? Difícil dizer. Mas essa consolidação em função dos investimentos que passaram a ser muito relevantes, seja por questões tecnológicas, seja por questões regulatórias ou ambientais, levou a uma concentração.

 

E qual a grande tendência para o setor?

O mercado de automóveis passou de fato por grandes transformações. Percebo que aquele desejo de possuir um automóvel, observado em décadas passadas, hoje é menos evidente. O setor automotivo se aproxima muito ao da tecnologia. Quanto mais se fala em inovação e tecnologia, mais ele aposta em inovação e em tecnologia. Os nossos grandes concorrentes não são tanto as próprias montadoras, mas, sim, o setor de tecnologia… (Isto É Dinheiro/Claudio Gatti)