O Estado de S. Paulo
Um ano depois de lançado pelo governo, o plano Novo Mercado de Gás deve ser votado pela Câmara dos Deputados nos próximos dias e pode destravar investimentos da ordem de R$ 43 bilhões, segundo os cálculos do governo. Apesar do avanço de algumas medidas no âmbito federal, o prometido “choque de energia barata”, do ministro da Economia Paulo Guedes, ficou longe do objetivo de baixar o preço do gás natural em 40%, pois ainda sofre resistências nos Estados e distribuidoras locais.
O governo pretende garantir acesso de empresas privadas à infraestrutura de escoamento e transporte de gás natural (usado como combustível no transporte e nas usinas termelétricas, bem como fonte de energia em casas, fábricas e estabelecimentos comerciais, além de poder ser convertido em ureia, amônia e outros produtos usados como matéria-prima em diversas indústrias).
Hoje, o projeto terá um pedido de urgência avaliado pelos deputados. Se aprovado, os parlamentares passam a tratar com prioridade o tema, que é base do programa lançado pela União ao abrir o mercado para novas empresas. A queda de custo deve atingir principalmente os principais consumidores do gás natural – a indústria e o setor de energia termelétrica. Mas a expectativa do governo é que essa redução seja repassada ao consumidor final.
Há praticamente consenso em relação ao teor do texto, já aprovado, em outubro do ano passado, na Comissão de Minas e Energia da Câmara, sob relatoria do deputado Silas Câmara (Rep-AM). Escolhido para relatar a proposta no plenário pelo presidente da Casa, Rodrigo Maia (DEM-RJ), o deputado Laércio Oliveira (PP-SE) disse que vai manter o texto na íntegra. “O projeto é uma construção conjunta e já venho trabalhando nisso desde 2019. Minha intenção é blindar o texto, que foi fruto de muita conversa”, afirmou.
O Ministério de Minas e Energia (MME) diz que o texto reflete o consenso no setor, consolida boas práticas regulatórias, traz segurança jurídica, estabelece tratamento isonômico a todas as empresas e destrava investimentos em infraestrutura essenciais à expansão do mercado. Produtores, transportadores e consumidores defendem a proposta, mas há pressão das estatais estaduais por mudanças.
Associações
O secretário-executivo de Gás Natural do Instituto Brasileiro de Petróleo, Gás e Biocombustíveis (IBP), Luiz Costamilan, avalia que o texto em análise na Câmara é o “projeto possível”. “Vemos a proposta como o projeto possível, que permite que a gente avance para um mercado de gás natural que seja competitivo, em que se estabelece competição na oferta, na comercialização e ao mesmo tempo, preserva integralmente a exclusividade dos Estados com relação aos serviços locais de gás canalizado”, diz.
O presidente-executivo da Associação de Empresas de Transporte de Gás Natural por Gasoduto (ATGÁS), Rogério Manso, afirma que o projeto é resultado de anos de discussão entre todos os agentes. “É um projeto de alta qualidade, que não nasceu no vácuo. É claramente reflexo de uma grande maioria da indústria. Está na hora de aprová-lo”, disse. “É uma escolha entre o Brasil de muitos e o Brasil de poucos. O novo mercado de gás é o Brasil do desenvolvimento, dos empregos e da recuperação da economia”, compara o presidente da Associação Brasileira de Grandes Consumidores de Energia (Abrace), Paulo Pedrosa.
Já a Associação Brasileira das Empresas Distribuidoras de Gás Canalizado (Abegás), que representa as estatais estaduais, quer ajustes na proposta que está em votação e um papel mais ativo do governo no setor. A entidade defende propostas que garantam a demanda, como um plano de universalização do gás natural e um plano para substituir o combustível usado em veículos de transporte de carga e passageiros. A Abegás propõe ainda a realização de leilões para a escolha de termelétricas que funcionariam como “âncoras” no sistema. Nesse modelo, caberia ao governo criar um programa de desenvolvimento de infraestruturas essenciais para custear rotas de escoamento de produção, unidades de processamento e gasodutos de transporte.
Grandes consumidores
Os grandes consumidores são os principais interessados na aprovação da proposta do novo marco de gás. Um grupo de 65 entidades assinou um documento em apoio à proposta, entre eles a Confederação Nacional da Indústria (CNI) e a Associação Brasileira de Grandes Consumidores de Energia (Abrace). Entre os setores que integram o movimento estão as associações de alumínio, cimento, cloro, calçados, máquinas e equipamentos, plástico, confecção, vidro, cerâmica e eletroeletrônicos.
O aumento do custo da energia e do gás levou ao encolhimento da indústria de alumínio no Brasil, afirma o presidente-Executivo da Associação Brasileira do Alumínio (Abal), Milton Rego. A produção de alumínio primário atingiu 650 mil toneladas em 2019, menos da metade da de 2008, de 1,661 milhão de toneladas, ano do ápice da produção. Ao longo desse período, cinco unidades produtivas foram fechadas e o País se tornou importador. O insumo também é essencial para a reciclagem e para a produção de alumina para exportação.
Segundo a Abal, enquanto no Brasil a indústria paga US$ 14 por milhão de BTU (unidade térmica britânica, na sigla em inglês), nos EUA, o custo é de US$ 3, e na Europa, US$ 7. O alumínio é um dos principais itens da indústria automotiva e alimentícia, bem como da construção civil.
“Energia e gás são importantes para a indústria de forma geral, mas para o setor de alumínio é questão de vida ou morte. E esse custo não está apenas na conta que pagamos, mas dentro dos produtos que consumimos e utilizamos”, afirmou Rego. Para o presidente-executivo da Abal, não é momento para discutir alterações na proposta, que é debatida há anos no âmbito do governo e do Congresso. “Qualquer mudança ou projeto novo que surja agora é simplesmente manobra protelatória para adiar a votação. Depois de acompanhamos o projeto por tanto tempo e de tanta discussão, é frustrante observar tentativas de cristalizar uma situação praticamente cartorial no mercado de gás”, afirmou.
Segundo maior consumidor industrial de gás natural do País, o setor de cerâmicas de revestimento e louças sanitárias também apoia a proposta em discussão na Câmara. O diretor de Relações Institucionais da Associação Paulista das Cerâmicas de Revestimento (Aspacer), Luís Fernando Quilici, disse que a proposta é importante para impulsionar empregos e investimentos no pós-pandemia. “O projeto traz em seu conteúdo um grande consenso construído arduamente ao longo do tempo”, disse ele, que também é consultor da Associação Nacional dos Fabricantes de Cerâmica para Revestimentos, Louças Sanitárias e Congêneres (Anfacer).
O setor representa 6% do PIB da indústria de material de construção e reúne 54 empresas e 71 fábricas em 11 Estados, com geração de 28 mil empregos diretos e 200 mil indiretos. O gás natural representa até 30% dos custos de fabricação de cerâmica. Do total da produção, 12% é exportado, índice que poderia dobrar com a redução de preços, avalia Quilici.
No flanco oposto, as distribuidoras de gás avaliam que o projeto é insuficiente para dar conta dos desafios do setor. Para a Abegás, a proposta estabelece dispositivos que já existem. “O que vai gerar de fato competitividade no setor de gás é acelerar o acesso de outros agentes à infraestrutura essencial existente e criar condições para que os investimentos em infraestrutura aconteçam e o gás do pré-sal chegue ao mercado consumidor com concorrência na oferta”, diz a entidade. (O Estado de S. Paulo/Anne Warth)