Pandemia pode fazer carro autônomo reduzir velocidade e até mudar de rota

O Estado de S. Paulo 

 

Uma das tecnologias mais badaladas da última década, o carro autônomo passou anos sendo prometido como uma revolução que chegaria às ruas em 2020 – ao menos, nos países desenvolvidos. O tempo passou e, apesar de avanços significativos de algumas empresas, essa previsão otimista não se confirmou. Já a realidade pessimista do mundo com o coronavírus pode deixar essa ambição ainda mais distante: segundo analistas ouvidos pelo Estadão nas últimas semanas, a pandemia pode fazer as pesquisas para veículos sem motoristas terem de reduzir sua velocidade ou, até mesmo, mudar de rota.

 

Há diversos motivos para isso, mas o principal deles é de ordem econômica: desenvolver um sistema de carro autônomo custa caro, bem caro. Segundo estimativa feita pelo site americano The Information no início de 2020, mais de US$ 16 bilhões já foram gastos pelas empresas de tecnologia e montadoras em pesquisas na área. É um trabalho complexo: envolve a captação de imagens em tempo real, o uso de sensores e radares, combinados a algoritmos sofisticados de inteligência artificial (IA).

 

E isso falando apenas do “cérebro” de um sistema de condução autônoma, para não falar no carro propriamente dito. Uma vez que o sistema está pronto, é preciso ainda executar testes por milhares de quilômetros até se ter certeza que um carro sem motorista passou na prova e pode, enfim, “tirar sua carteira de habilitação”, sendo capaz de dirigir por aí com segurança.

 

Orçamento

 

Em um mundo pré-pandemia, o custo de desenvolvimento para um produto que ainda estava longe de chegar aos consumidores já era alto – o que fez diversas empresas, entre montadoras e companhias de tecnologia, se unirem em parcerias estratégicas. Com o coronavírus, esse orçamento se tornou ainda mais reduzido. “A perspectiva das montadoras foi bastante afetada pela pandemia, porque as pessoas não estão comprando carros”, diz Pedro Pacheco, analista da consultoria Gartner.

 

Segundo ele, há quatro grandes pilares na transformação da mobilidade: conectividade, condução autônoma, eletrificação e compartilhamento de viagens. “Num ambiente de crise, a prioridade é onde é possível alcançar resultado a curto prazo – no caso, a conectividade e os carros elétricos. A condução autônoma, por sua vez, será atrasada.”.

 

Do lado das empresas de tecnologia, por sua vez, o cenário também é complexo. “A Alphabet, dona do Google e da Waymo, vai ganhar menos com publicidade por causa da pandemia. O cofre também vai ficar menor, embora menos que o das montadoras”, afirma Bryant Walker Smith, pesquisador do Centro de Internet e Sociedade da Universidade Stanford.

 

Outro nome forte do setor, o Uber viu o volume de viagens cair 80% nas grandes cidades no início da pandemia e teve de fazer milhares de demissões durante a pandemia. “Startups menores e empresas independentes, por sua vez, podem ter problemas de financiamento. Haverá consolidação e falências”, aposta Pacheco. Por outro lado, isso pode gerar oportunidades para quem ainda não entrou no mercado: a Amazon, por exemplo, pagou US$ 1 bilhão para adquirir a startup americana Zoox, que tinha o projeto de criar um carro autônomo do zero, sem adaptar modelos reais.

 

Para Smith, no entanto, talvez o impacto direto e real do coronavírus no avanço da tecnologia será menor do que o que será visto. “A tecnologia dos carros autônomos está passando pelo vale da desilusão, com a impressão de que vai demorar muito tempo agora para se tornar realidade. E algumas empresas vão usar o coronavírus como desculpa para desistirem dos seus planos.” Por outro lado, ele aponta que o período de isolamento social e a quarentena não são desculpas para a pausa no desenvolvimento. “Há muito que pode ser feito mesmo sem os carros estarem na rua”, diz.

 

Apontada por muitos especialistas como líder no desenvolvimento da tecnologia hoje, a Waymo, empresa irmã do Google, não parou suas pesquisas. “Continuamos a avançar com foco tanto em hardware e software, além de direção em ambientes simulados. Já voltamos a operar nosso serviço de robô-táxi em Phoenix, no Arizona, bem como em São Francisco”, declarou um porta-voz da empresa ao Estadão. A companhia também se diz atenta para “mudanças de comportamento das pessoas com relação aos carros no mundo pós-covid”.

 

Há quem diga que a desistência de outras empresas pode dar ainda mais vantagem à Waymo no setor no futuro. “Antes da pandemia, eles estavam de olho em como se tornar menos dependentes do Google, captando investimentos. É uma empresa que pode mudar o jogo sim”, afirma Smith.

 

Sem compartilhamento

 

Faz sentido: no mundo pré-pandemia, o principal modelo de negócios para o carro autônomo seria o de viagens compartilhadas, como acontece hoje no Uber, mas sem a presença de um motorista humano. Num futuro próximo, porém, isso pode não ser tão razoável – mesmo depois da vacina, o medo de outras pandemias pode fazer muita gente evitar compartilhar transporte.

 

“Existe uma tendência de volta ao carro na China nesse momento, por conta de proteção. É cedo pra dizer se ela vai se confirmar em outros países, mas a posse do veículo parece uma defesa sanitária no momento”, diz Ricardo Bacellar, líder da área automotiva da consultoria KPMG no Brasil. Para Pacheco, é uma mudança que não necessariamente vai se realizar.  “O desenvolvimento de um carro autônomo completo ainda está tão longe que isso só será realmente afetado se a pandemia se estender por vários anos”, afirma.

 

Na visão de Smith, diferenças na condição econômica de alguns países podem criar dois cenários: locais em que o custo trabalhista é alto podem ter maior uso de carros autônomos; caso contrário, será mais barato pagar um motorista do que a higienização de um veículo sem um profissional.

 

Para o pesquisador de Stanford, independentemente disso, a tecnologia de condução sem motorista pode ser aproveitada em outras áreas, abrindo novas possibilidades – duas óbvias, diz o especialista, são entregas de curta distância e viagens de carga de longa distância, mas há mais por aí. É algo que, para ele, explica porque a Amazon comprou a Zoox. “A ideia parece menos ser dona de um carro autônomo e mais de usar essa tecnologia em processos internos, como melhorar centros de distribuição ou entregas”, afirma.

 

É um caminho bem mais realista que a chegada de um carro autônomo completamente funcional às ruas – algo que nenhum especialista arrisca fazer uma previsão. “Desde os anos 1930, dizemos que o carro autônomo chegará daqui duas décadas. Nos anos 2010, baixamos esse prazo para cinco anos, mas ele ainda demora para chegar”, diz Smith. Para Pacheco, qualquer coisa que aconteça antes de 2025 parece um prognóstico exagerado.

 

Enquanto isso, há quem aposte que esse modelo do futuro nunca chegue – caso de Steven Choi, engenheiro que participou dos projetos de Waymo e Uber e hoje dirige a área de IA da fintech Olivia. Segundo ele, os melhores sistemas de IA tem tempo de reação de 0,7 segundos – muito alto para qualquer incidente de trânsito. “Um avião autônomo é mais fácil de acontecer que um carro autônomo, porque menos coisas acontecem no ar”, diz ele. Smith, porém, é menos pessimista. “Haverá casos de uso em baixa velocidade e ambientes simples em breve”, diz o pesquisador de Stanford. Talvez o futuro do carro autônomo esteja aí, em uma viagem lenta, gradual e restrita. (O Estado de S. Paulo/Bruno Capelas)