Fiat Chrysler recorre a antropólogos para tentar decifrar o consumidor pós-pandemia

O Estado de S. Paulo

 

A FCA Fiat Chrysler recorreu a um grupo de antropólogos para tentar decifrar como será o consumidor brasileiro do pós-coronavírus. A empresa leva em conta premissas de que, após a pandemia, haverá um “novo normal”, com mudanças de comportamento das pessoas e da própria sociedade. A ideia é começar a se preparar para atender a uma possível nova demanda por automóveis que pode manter características dos modelos atuais, mas com necessidades diferentes.

 

O italiano Antonio Filosa, presidente da empresa na América Latina, acredita, por exemplo, que a necessidade de mobilidade vai mudar. “Seguramente vamos encontrar um novo consumidor depois desse processo”, diz.

 

Por um lado, haverá consumidores afetados pela crise econômica que queriam um carro, mas vão adiar a compra. Por outro, avalia, haverá pessoas que vão se sentir inseguras enquanto não houver uma vacina contra a covid-19 e vão evitar andar de ônibus.

 

Antonio Filosa

 

Parte deles deve optar por serviços de aplicativos e quem tiver condições vai decidir pela compra. “As pessoas vão querer ficar dentro de uma cápsula e isso vai exigir mudanças no interior do carro, incluindo maior demanda por equipamentos digitais.”

 

Também pode ocorrer uma procura maior por modelos de entrada, os mais baratos de cada marca e, segundo Filosa, a empresa terá de fazer um esforço para ser mais competitiva nesse segmento, que nos últimos anos vem perdendo participação nas vendas.

 

A FCA já tem os projetos para o lançamento de três utilitários-esportivos (SUVs) – dois da marca Fiat e um da Jeep – antes previstos para serem lançados em 2021, mas, com a postergação de investimentos já anunciada pela empresa, pode haver atrasos que devem variar de 3 a 12 meses, dependendo da situação e do produto. São veículos com faixa de preço bem acima dos de entrada, mas o executivo não pensa em alterar os projetos.

 

“É claro que o mercado de veículos será muito menor nos próximos anos, mas acredito que a demanda pelos SUVs não vai mudar como tendência. Mesmo num mercado menor, continuará o desejo pelos SUVs, mesmo que alguns tenham de adiar a compra por um tempo”, afirma Filosa.

 

Outra avaliação é de que, por um tempo, a média de quilometragem dos automóveis vai diminuir. “Acredito que menos pessoas usarão os carros para viagens de turismo, por exemplo.” Também surgirão novos serviços. Ele cita o exemplo da China, onde o mercado está sendo reaberto lentamente e já se observa a venda de kits de higienização para carros. Os filtros para ar condicionado estão sendo fortalecidos por causa da covid-19.

 

Trimestre dramático

 

O que é certo na visão de todo o setor automotivo é que esse novo mercado inicialmente será muito pequeno. Para Filosa, o segundo trimestre será “dramático”, com queda de vendas de cerca de 70% em relação ao mesmo período do ano passado. Ele espera uma reação nos meses seguintes. “Para o terceiro trimestre esperamos uma queda de, entre aspas, ‘somente’ 40%. E no quatro trimestre uma queda de, entre aspas novamente, ‘somente’ 20%.”

 

O resultado para o ano todo, prevê ele, será de uma redução de 40% no mercado total em relação aos 2,66 milhões de automóveis e comerciais leves vendidos em 2019. Filosa ressalta que, se as vendas do último semestre forem mais alinhadas com as do segundo trimestre, a queda pode ficar acima dos 40%. “Mas não estamos enxergamos esse cenário neste momento”, ressalta.

 

O executivo acredita que só daqui a três anos o mercado brasileiro vai voltar aos níveis do ano passado. Apesar desse quadro, dificilmente não haverá reajuste de preços em vários modelos assim que a produção começar a ser retomada, o que começa a ocorrer, no caso das fábricas de automóveis, a partir de meados de maio. O câmbio supervalorizado deve levar as empresas a tentarem repassar ao menos uma parte das perdas.

 

A retomada da produção também vai ocorrer com aumento de custos para um setor que já reclama muito da falta de liquidez num momento em que as vendas estão praticamente zeradas, assim como as receitas. Há gastos extras com alterações nas fábricas para garantir a segurança dos trabalhadores, como compra de medidores de temperatura, máscaras, aumento de frota e ônibus, de serviços de limpeza, de logística para trazer componentes entre outros.

 

“Mas esses são nossos menores problemas”, afirma Filosa. “O grande problema é que não estamos vendendo nada, não está entrando dinheiro, continuamos tendo custos – para remunerar nossos fornecedores e pagar salários, por exemplo – e tudo isso está gerando um blecaute de caixa que não podemos resolver sozinhos”, diz, se referindo à necessidade de um acerto urgente entre empresas, governo e bancos para a criação de linhas especiais de crédito.

 

Filosa lembra que a cadeia do setor envolve cerca de 7 mil empresas que empregam 1,3 milhão de pessoas. Ele elogia a criação da MP 936, que dá fôlego às indústrias para garantir empregos por um período, mas reforça que o problema da liquidez precisa ser resolvido urgentemente pois, em breve, pequenos fornecedores não terão nem como pagar salários.

 

A FCA pretende voltar a produzir nas fábricas de Betim (MG) e Goiana (PE) em meados de maio e já está preparando as instalações para seguir todos os cuidados necessários para evitar a contaminação pelo coronavírus, de acordo com protocolos dos órgãos de saúde e de empresas de países como China e Alemanha, que já retomaram ou estão retomando as atividades. “Se o processo não estiver 100% seguro, a gente não volta”, afirma Filosa.

 

Para explicar o que deve surgir desse “novo normal”, Filosa recorreu à história que sua avó contava sobre a Segunda Guerra Mundial.

 

“É um exemplo banal e bobo, mas minha avó dizia que, antes da guerra, o consumo de massas entre os italianos já era alto, mas não tanto como hoje. Durante o choque da guerra, as famílias que ficaram em casa não tinham como conservar produtos como a carne pois tudo foi cortado, como energia e recursos. Havia muitas restrições, mas era preciso alimentar os filhos. O que era mais fácil de fazer e guardar era a massa. Mas aí começaram a criar diferentes tipos de massa, a usar diferentes condimentos e molhos. Assim, nossa tradicional cozinha de massa ficou super criativa. Quando a guerra acabou e o país começou a voltar à sua normalidade, havia milhares de receitas. Ou seja, a normalidade voltou, mas com mudanças. Alguma coisa ficou do período anterior, mas os comportamentos são outros. É isso que vamos estudar para entender como pequenas mudanças que pensamos para nossos produtos podem ser determinantes nu mercado que virá depois. Existem coisas que entrarão em nossos produtos que serão diferentes de antes por causa do que passamos”. (O Estado de S. Paulo/Cleide Silva)