O Estado de S. Paulo
Esta nova cepa de coronavírus está amarrada de nascença com a indústria da tecnologia. Surgiu em Wuhan, na China, capital de sua indústria automotiva e a duas horas de trem de Shenzhen, o Vale do Silício asiático. De lá, espalhou-se para a Coreia do Sul, para o norte da Itália e entrou nos EUA pelo norte da Califórnia e Estado de Washington. Milão é um dos centros europeus da ótica, e lentes são indispensáveis na telefonia celular. Da Coreia do Sul vem a Samsung, maior fabricante de smartphones Android. No norte da Califórnia estão Apple, Facebook, Google e tantas outras – o Vale do Silício original. E, em Washington, Microsoft e Amazon. O digital é o marco zero da epidemia mundial. Este 2020 já é, para a indústria, um ano essencialmente perdido.
A produção de tecnologia depende de viagens. Novos aparelhos nascem a partir do encontro de quem os desenha, não raro na Califórnia, com quem os fabrica. Encontros físicos. Há novos materiais para testar e linhas de montagem para organizar, além de contratos complexos para debater. Não dá para resolver por Skype – a ponte-aérea São Francisco-Shenzhen é a alma de três quartos dos aparelhos que carregamos conosco.
O Vale do Silício congelou. Desde segunda-feira, dia 9, Stanford, a universidade que ocupa seu centro intelectual, está fechada. O belo câmpus arborizado que por lá apelidaram de “a fazenda”, deserto. Aulas, só via internet. Google e Facebook cancelaram seus eventos do primeiro semestre. A Apple já enfrenta atraso com o sucessor do iPhone barato, modelo SE.
Estes encontros que o Vale organiza no primeiro semestre são fundamentais para a indústria. Vem gente de todos os cantos, em sua maioria técnicos, para conhecer os lançamentos que virão no segundo semestre. É com base nestas informações que apps e apetrechos para os novos celulares, tablets e computadores são desenvolvidos. Ou seja: os aparelhos que chegarão em 2020, além de atrasos na fabricação, terão menos acessórios.
Não há como medir o tamanho do atraso, mas esta é uma indústria que depende de viagens para criar – em todas as fases dos produtos. Se a epidemia se estender até junho, até haverá produtos novos, mas muito do que poderia ser desenvolvido para as linhas de 2021 e 2022, que estão sendo encaradas agora, não vai acontecer.
O problema não é só com a indústria americana. A China planejava encerrar 2020 com todas as cidades de mais de 1 milhão de habitantes com infraestrutura para 5G. Queria chegar na frente de todos. Não conseguirá. Vai faltar mão de obra e, principalmente, equipamento. A maioria das fábricas opera bem abaixo da capacidade. E, neste caso, se falta equipamento à China, faltará também para o resto do mundo. O 5G chegará com atraso para todos.
Mas nem tudo é perda ou atraso. Porque, se do ponto de vista dos produtos os meses perdidos terão impacto real, para a cultura digital pode ser diferente. Não é só Stanford que promove em quantidade massiva aulas online. Muitas das grandes universidades americanas estão fazendo o mesmo. É uma experiência em escala que vai testar servidores e software, educar alunos e professores, e daí sairá um resultado rico.
O mesmo ocorre com as muitas empresas que, por precaução inevitável, mandarão seus funcionários para casa. Se sempre houve conservadorismo para lidar com a ideia de trabalho remoto, esta é também uma experiência de larga escala que, no fim, deixará muito conhecimento. Vantagens e desvantagens serão descobertas e sistemas, adaptados. A indústria digital vai sofrer. E a cultura digital, florescer. (O Estado de S. Paulo/Pedro Doria)