A indústria, as bolsas e a tese de Bolsonaro

O Estado de S. Paulo

 

Se o presidente estiver certo, a “grande mídia” terá confundido bolsas de todo o mundo, além de ter criado a ilusão de uma epidemia em cerca de cem países.

 

Depois de um dia de pânico em todo o mundo, a terça-feira começou com novidades positivas – uma reação dos mercados e animadores sinais da indústria brasileira. Mas a boa notícia da indústria, o início de retomada em janeiro, chegou já superada pela crise do coronavírus. Em janeiro a produção industrial cresceu 0,9% no Brasil, depois de acumular recuo de 2,4% nos dois meses anteriores. A leve retomada foi puxada pela indústria de transformação, detalhe especialmente promissor, segundo avaliação da pesquisadora Luana Miranda, da Fundação Getúlio Vargas (FGV). Mas os sinais positivos ocorreram antes da epidemia já espalhada por dezenas de países. A pesquisadora lembrou o risco de escassez de insumos. Fábricas de vários setores trabalham com peças e componentes importados da China. É cedo para dizer se efeitos da crise aparecerão nos dados de fevereiro, comentou o pesquisador André Macedo, gerente da área de indústria do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

 

Diante dos problemas do coronavírus, os dados de janeiro da indústria já são velhos, comentou o economista Rodrigo Nishida, da LCA Consultores. Segundo ele, os efeitos já observados da epidemia são maiores do que os previstos há cerca de um mês. Esses efeitos, acrescentou, vão além da oferta e podem prejudicar também a confiança e a demanda, com risco de crise sistêmica.

 

Essa preocupação é defensável. Previsões detalhadas são especialmente inseguras, neste momento, mas nenhuma pessoa sensata pode menosprezar riscos econômicos ligados a uma epidemia já presente em cerca de cem países.

 

O pior para a economia global ainda virá nos próximos meses, segundo avaliação divulgada pela Pimco, a maior gestora mundial de fundos de títulos privados, com ativos de US$ 1,9 trilhão. O economista global da gestora, Joachim Fels, mencionou o risco de uma recessão técnica – dois trimestres consecutivos de retração econômica – nos Estados Unidos e na zona do euro. Na ausência de grandes desajustes domésticos, no entanto, a retração nas grandes economias deverá ser logo superada, acrescentou. Quando a Pimco apresentou sua análise, ontem, havia a expectativa de anúncio de medidas econômicas pelo governo americano.

 

A epidemia continua e os problemas se ampliam nos países atingidos. É preciso observar esses dados ao avaliar as oscilações de mercado. Houve alguma recuperação dos preços do petróleo, ontem, e as bolsas de valores voltaram a subir. Mas a reação foi insuficiente para compensar as perdas.

 

No Brasil, a Bolsa de Valores chegou a subir mais de 4%, mas por volta das 14 h o Ibovespa, seu índice principal, estava em alta de 2,87%. Na segunda-feira havia fechado em queda de 12,17%, a maior desde 1998. Na Europa, ainda havia baixa em Milão, com recuo de mais de 2% no começo da tarde. No Brasil, o dólar havia baixado para R$ 4,65, depois de haver batido em R$ 4,72 no fechamento de segunda-feira.

 

Com tanta insegurança nos mercados, é especialmente difícil estimar como os negócios poderão evoluir nos próximos meses – no Brasil e na maior parte do mundo. Também por isso o planejamento empresarial fica mais complicado. Isso envolve as decisões de investimento produtivo. É muito difícil estimar, agora, a evolução da indústria até o fim do ano. A retomada em janeiro, embora animadora, foi modesta. A produção cresceu 0,9% sobre dezembro, mas foi 0,9% menor que a de um ano antes e caiu 1% em 12 meses.

 

A maior fonte de esperança, hoje, é o presidente Jair Bolsonaro. Segundo ele, a disseminação do coronavírus está superdimensionada. “Não é tudo isso que a grande mídia propaga”, assegurou. Quanto à queda das bolsas, “acontece esporadicamente”.

 

Se ele estiver certo, a “grande mídia” terá confundido bolsas de todo o mundo e enrolado economistas da Pimco, de multinacionais, dos maiores bancos centrais e dos governos do mundo rico, induzidos a agir contra uma crise irreal, além de ter criado a ilusão de uma epidemia em cerca de cem países. (O Estado de S. Paulo)