Época Negócio
Quando ia à praia em Taizhou, a cidade onde nasceu, na costa leste chinesa, o menino Li Shufu gostava mais de brincar na areia do que na água. Mas não erguia castelos, como a maioria de seus amigos – preferia dar forma a automóveis, de preferência a algum modelo da Mercedes-Benz, marca pela qual sempre foi apaixonado. Ter um carro assim, de verdade, era um sonho distante demais para qualquer chinês naquela época, início dos anos 70, quando o país mais populoso do mundo apenas começava a quebrar o seu isolamento do resto do mundo.
Nascido em 1963, o jovem Li teve a sorte de evoluir junto com o regime chinês e a sabedoria de aproveitar cada brecha que se abria no mercado de seu país para empreender. Começou modestamente, aos 17 anos, tirando fotos de turistas na praia. Em pouco tempo, conseguiu montar um estúdio e fazer dele também um ponto de venda de câmeras novas e usadas. Foi quando percebeu que podia ganhar mais dinheiro extraindo ouro e prata de máquinas velhas do que vendendo equipamentos novos. Quando outros descobriram esse negócio e a concorrência aumentou, Li, aos 23 anos, já havia mudado de ramo novamente e montado uma fábrica de peças de geladeira. “Os chineses aprendem rápido”, ele costuma dizer, referindo-se a si mesmo e aos compatriotas que tentaram seguir suas pegadas.
Sempre um passo à frente dos demais, Li criou a marca Geely – que remete à palavra “sorte”, em chinês – e passou a fabricar geladeiras inteiras, em 1987, depois motos, em 1993, e por fim carros, sua grande paixão, em 1997. Era uma ousadia e tanto, uma vez que só o governo chinês produzia automóveis, até então. Para driblar a burocracia estatal, Li primeiro comprou uma fábrica de caminhões que funcionava dentro de uma prisão. Quando o diretor da cadeia morreu, três anos depois, ele arrematou o restante das ações e convenceu as autoridades a deixá-lo montar carros, fora do sistema prisional.
Vale lembrar que o primeiro carro que ele montou na vida foi uma réplica do Mercedes Classe E, com carroceria de fibra de vidro sobre o chassi de um modelo popular da marca chinesa Hongqi. Serviu para realizar um sonho de criança e chamar a atenção para a montadora que ele estava criando. Os primeiros modelos foram inspirados nos compactos japoneses da Daihatsu.
Os anos iniciais da montadora Geely foram difíceis, marcados por fornadas de carros de baixa qualidade. Mas chineses não desistem fácil – e Li, muito menos. À medida que corrigia os defeitos de seus produtos e eles caíam no gosto popular, o fundador da primeira montadora privada da China comemorava escrevendo poemas em tom patriótico. Versos assim, bem banais:
A Geely decolou, Li mudou-se para Hangzhou, uma metrópole a 270 quilômetros de sua cidade natal, e passou a frequentar as listas de milionários chineses – no levantamento mais recente da revista Forbes, de agosto deste ano, ele aparece como o 91º homem mais rico do mundo, com uma fortuna de US$ 13,2 bilhões. O Ocidente só percebeu quem ele era, porém, em 2010, quando pagou US$ 1,8 bilhão à Ford pela divisão de carros da Volvo. Num lance ainda mais arrojado, Li montou uma operação sigilosa, usando empresas de fachada de Hong Kong, para comprar, ao longo de um ano, todas as ações da Daimler – o grupo alemão que controla a Mercedes-Benz – disponíveis nas bolsas de valores europeias. Em janeiro de 2018, de posse de 9,68% do total de ações da Daimler, ele anunciou sua posição e passou a dar as cartas no grupo alemão.
Ao se transformar no maior acionista individual da empresa que faz os carros que ele sempre admirou, numa cartada de US$ 9 bilhões, Li saboreou ainda a doce vingança de destronar o alemão Dieter Zetsche do cargo de CEO – o mesmo que o rechaçou quando quis comprar uma participação na Daimler pelos canais convencionais. “Se quiser, vá ao mercado”, sugeriu Zetsche. Li foi – e mandou Zetsche ao limbo.
Entre uma e outra manobra mais espetacular, Li também anexou ao seu patrimônio as montadoras Lotus (inglesa), Proton (malaia) e London EV (dos táxis pretos de Londres). No final de 2018, associou-se à estatal chinesa Casic para construir um trem-bala capaz de atingir mil quilômetros por hora. E deixou claro que o céu é o seu limite ao anunciar, agora em setembro, um investimento na alemã Volocopter, que desenvolve um carro voador.
Em 2014, Li flertou com o Brasil ao enviar para cá alguns modelos Geely, oferecidos nas concessionárias Kia. Vendeu pouco mais de mil unidades e encerrou o contrato em 2016. Há um rumor forte de que ele estaria interessado em voltar, mas dessa vez como fabricante – aproveitando a capacidade ociosa da fábrica de Catalão, em Goiás, onde o grupo Souza Ramos monta modelos Mitsubishi e Suzuki. A notícia não foi confirmada, mas não deve ser descartada. Li já provou, mais de uma vez, que adora desafios e sabe como se reinventar. (Época Negócio/Li Shufu)