Mercado de caminhões: desconectado da capa do jornal

AutoIndústria

 

A Fenatran 2019 deverá ficar marcada não só pela consolidação da recuperação do mercado de caminhões, mas também pelo início de uma nova era tecnológica do setor de transporte. A feira deu vitrine para combustíveis alternativos, serviços baseados na conectividade e novos acionamentos veiculares, como os elétricos.

 

A Mercedes-Benz, por exemplo, a partir da Fenatran passou a oferecer caminhão sem retrovisor, traz câmeras em vez de espelhos e principalmente tecnologia semiautônoma de série, em recurso capaz de frear o veículo caso identifique risco de colisão e o motorista não tome nenhuma atitude.

 

O vice-presidente de vendas e marketing de caminhões e ônibus da Mercedes-Benz do Brasil, Roberto Leoncini, entende que apesar dos maiores custos que os novos tempos trazem, também mais segurança e eficiência serão reforçadas. Nesta entrevista exclusiva para o AutoIndústria durante a Fenantran 2019, o executivo conta como as evoluções ajudarão e as razões de o mercado de caminhões crescer em descompasso com a recuperação da própria economia.

 

Entrevista a Décio Costa e George Guimarães

 

A Mercedes-Benz traz para a Fenatran 2019 um novo patamar tecnológico para o País, caminhões dotados de recursos semiautônomos e com possibilidade de ter câmeras em vez de espelhos retrovisores. O transportador brasileiro está disposto a pagar por isso tudo?

O custo é relativo, porque se a tecnologia adiciona benefício, no final ela se paga. Ninguém imaginava que traríamos as câmeras para a Fenatran. Apresentamos a tecnologia no IAA e começamos a entregar em junho na Europa. Pela primeira vez trouxemos uma tecnologia muito rápido para o Brasil. Quem compra tecnologia, compra porque sabe que traz benefícios. No caso das câmeras, o maior deles é a segurança, pois oferece um outro nível de visão lateral, muito maior.

 

A exemplo do ABA, o assistente ativo de frenagem, as câmeras também serão oferecidas como item de série?

As câmeras são opcionais. Deverão adicionar ao preço de R$ 11 mil a R$ 15 mil, dependendo da configuração do caminhão.

 

E precisa ser necessariamente de fábrica? O transportador não poderia, por exemplo, instalar na rede?

Tem de ser de fábrica porque é preciso integrar os módulos das câmeras na central eletrônica do caminhão. É tipo de modelo de acordo com o pedido, pois aceita pouco retrabalho depois de produzido. Não é possível simplesmente tirar o retrovisor e colocar a câmera. Como agora 100% dos caminhões tem o ABA, o sensor lateral cobre 165 graus do lado direito, quando não tem câmera ele mostra o alerta na coluna, quando tem câmera o aviso aprece no visor.

 

Já deu para sentir a receptividade do mercado na Fenatran em relação às novas tecnologias?

Teve muito transportador que ficou interessado em testar, saber como funciona. Mas estamos na Fenatran exatamente para isso: tirar a pressão e entender dos clientes que é legal ou não. Saber o mix entre o Actros atual e o novo, porque ainda vamos oferecer ao mercado os dois. O Actros 2651 continua como o nosso carro-chefe. Estamos administrando a intensidade e medindo, por isso a melhor coisa foi chegar pronto para a Fenatran. Não existe melhor laboratório do que esse para medir a intenção do cliente.

 

Na Fenatran a Mercedes-Benz também aumentou o portfólio com motor de 530 cavalos de potência. O de 510 disponível não atendia a necessidade do transportador?

Há algumas aplicações específicas nas quais acredito que o 530 vai solucionar uma das demandas dos clientes por maior velocidade média. Um exemplo: Ipatinga-São Paulo com bobina de aço em composição de nove eixos. Esse transportador quer potência, porque roda em um trecho muito pesado. O 510 ia bem, mas sempre tinha um senão do motorista para ter mais potência. Também em algumas rotas longas, com o tempo de transferência muito apertado, mais potência e torque vai ajudar. Mas depende do percurso, mais potência e mais torque em viagens muitas travadas é jogar dinheiro fora, porque nunca vai usar o potencial do caminhão.

 

Mas a Mercedes-Benz sentia a falta de um motor mais potente no portfólio?

Sentir não é bem a palavra. A gente é pressionado pelo restante das fabricantes. Todo mundo tem um quinhentos e alguma coisa e aí é evidente que o transportador vira para mim e pergunta se tenho o quinhentos e tal. Os “amigos” pedem para perguntar. Agora eu tenho. Isso aqui é um campo de guerra, todo mundo manda alguém perguntar alguma coisa para você que você não gostaria que perguntasse.

 

Com os portões da Fenatran abertos há pouco dias, o que já se pode dizer da feira?

É uma feira de negócios como sempre foi. Mas todos têm na memória a Fenatran de 2017. Naquele ano, uma série de coincidências levaram a ser uma mega Fenatran. A Mercedes-Benz ficou oito meses entregando caminhão.

 

Mas isso não é bom?

É bom, mas depende do tamanho da besteira que você fez, fica ruim. Agora, ainda é uma Fenatran de negócios, mas com o componente de serviços baseados na conectividade, a grande novidade. No fim vamos divulgar um número legal, mas não será aquela loucura que foi em 2017.

 

Qual é diferença desta em relação àquela?

Antes de 2017 ninguém comprava nada e naquela Fenatran o mercado resolveu comprar tudo o que não tinha comprado nos anos anteriores. De lá para cá, o mercado veio subindo. Certamente vamos superar 100 mil unidades e não vai ser por conta da Fenatran de 2019, o mercado já estava embalado.

 

Depois do pico de 2011, de 170 mil caminhões, e agora chegando em torno de 104 mil, qual seria o patamar saudável para o mercado de caminhões?

Depende de como se olha o mercado. Se perguntar para as montadoras, evidentemente o mercado deveria ser maior pela capacidade de sobra. Do ponto de vista logístico, da segurança e da eficiência da frota, acho que 100 mil é pouco. O País tem uma frota de quase 3 milhões de caminhões com uma idade média de 20 anos. Basta fazer um conta: quanto tempo deve levar para uma renovação de frota? Esse é um assunto importante, mas a pauta é de sustentabilidade, combustível alternativo etc. Na visão da Mercedes-Benz, a maior ação de sustentabilidade que o País poderia fazer é a renovação de frota. Se hoje rodassem nas estradas somente os caminhões Euro 3 e Euro 5, o País já alcançaria um outro patamar de emissão de CO2 e material particulado. O mesmo com relação à segurança. O caminhoneiro não quer ter caminhão velho, mas é levado a essa situação. Precisamos começar a fazer alguma coisa para mudar esse quadro.

 

Renovação de frota não é um assunto inédito. Sempre falta alguma coisa para isso sair do papel, por quê?

Acho que ainda falta maturidade para esse nível de preocupação. Os combustíveis alternativos, por exemplo, em evidência aqui na Fenatran, obrigam o País a investir em infraestrutura de distribuição. Esse investimento poderia ser usado para fazer uma renovação de frota. Existe sempre um conflito de interesse quando se fala em renovação de frota, sempre escondido sob o manto de que o dono do caminhão de 30 anos não tem crédito, que não consegue trocar de veículo. Se digitalizar todo o sistema de pagamento de frete, se analisar quanto ele tem de receita, dá para construir um crédito. Evidente que ele não vai comprar um caminhão 0 Km, mas talvez o Euro 3, que já é uma grande evolução em relação aos Euro 0.

 

Mas a discussão ou até mesmo oferta de combustíveis alternativos é importante para País, não?

Os combustíveis alternativos são importantes, mas acho que não no atual momento do País. Primeiro deveríamos focar na renovação de frota. Quando feita por um processo estabelecido, que funcione, começaríamos a discutir alternativas. O Euro 6, daqui a dois anos seria uma boa oportunidade em pensar quais seriam as soluções: diesel, eletrificação, gás, biodiesel. Tem o HVO, que a Mercedes-Benz defende, o biodiesel hidrogenado. Esse, por exemplo, não precisa de infraestrutura, ela está pronta, além de servir para qualquer caminhão. O HVO não zera emissão de CO2 e particulados, mas reduz significativamente. Célula de hidrogênio, caminhão elétrico na distribuição urbana são legais, mas costumo brincar: quem é que vai comprar a cerveja a R$ 30 a lata? Quando se fala em alternativas, nós, consumidores, teremos de tomar a decisão, a que polui ou a que não polui. Só acho que a nossa realidade está muito distante disso.

 

O mercado hoje parece tender para duas extremidades: os leves e os pesados. O que o destino reserva aos médios e semipesados?

A hora que País voltar a crescer, o semipesado volta a ter volume. É uma categoria muito voltada para a construção, para algum tipo de distribuição menor em rotas interestaduais. Tem algumas disfunções também, já vieram me perguntar a respeito de Accelo semileito porque ele viaja com o caminhão. Mas o Accelo é um modelo essencialmente urbano, ele precisa é de semipesado para carregar mais, fracionar a carga e ter cabine adequada para viagens. Hoje existe uma divisão não muito racional do mercado: quase 60% é de pesados e extrapesados, depois tem 30% de leves e o semipesado espremido entre os dois. Essa disfunção ocorreu porque o mercado de extrapesados é mais maduro, renova a frota, muito focado no custo operacional. Se você me perguntar se o ano que vem o mercado de pesados será de 60%, eu diria que não. Acho que será menor e aí, teremos uma recomposição nos outros segmentos.

 

Mas menor por que as outras categorias irão crescer?

Os outros segmentos vão subir, tomarão mais espaço. O mercado também vai chegar a um patamar no qual já experimentou as grandes renovações e, no futuro próximo, esperamos uma pequena onda de comprar em função da Euro 6.

 

Com o mercado crescendo por volta de 40% em 2019, o que o senhor estima para o ano que vem?

O mercado de caminhão desconectou da Faria Lima e da capa de jornal. Alguém está plantando, colhendo, armazenado, exportando, comprando e, por isso, o caminhão está andando. A economia voltando, o País ainda tem um nível de desemprego muito alto, mas menor do que antes. Nunca tivemos uma taxa de juros tão baixa. Se você perguntar para meus amigos do Banco Mercedes-Benz, invertemos a história. Antes era 80% Finame e 20% alguma coisa, hoje é 80% CDC, 20% alguma coisa fora as outras possibilidades, como consórcio. Se o País crescer, o setor de transporte pode surpreender novamente com números parecidos com os deste ano.

 

Há também o consumo em baixa, que afeta especialmente a distribuição de carga nas cidades.

Se a economia crescer, o consumo volta também. Só precisamos prestar atenção no que está acontecendo na logística. Há poucos dias um operador logístico disse que precisava entrar com água em um café de shopping quatro vezes ao dia. O comerciante dentro do shopping não tem espaço, ou vai quatro vezes ao dia encher a geladeira dele ou alguém vai fazer isso por ele. Essa mudança no consumo, na cadeia logística, a gente também precisa prestar atenção. Quando você entra quatro vezes ao dia dentro do shopping para abastecer, não se está mais falando em caminhão leve, mas de em comercial leve, uma Sprinter.

 

O transporte cada vez mais específico também impacta na complexidade industrial. Como administrar isso?

Aí que as coisas se conectam. A Indústria 4.0 surge para lidar com a complexidade. Mas ainda temos um portfólio enorme na Mercedes-Benz e estamos analisando. Não dá para conviver com isso. É muito animal no zoológico para alimentar. Tem de diminuir e entender a oferta sem penalizar o cliente final. Quanto mais complexidade, maiores os custos e menos competitividade. Veja a Fenatran; é uma guerra. Se eu não for tão competitivo quanto meus vizinhos, estou fora. Meu cliente vai dizer: “bacana, fantástico, mas não pago o que você está querendo me cobrar”. (AutoIndústria)