Crise e mudança: carros

O Estado de S. Paulo

 

No último artigo mencionei que, ao largo da recessão, muitas mudanças, tecnológicas e nos modelos de negócios, sempre avançam, aqui e lá fora, o que torna mais complexo o processo de recuperação. Esse é o caso do setor automotivo. Vejamos, em primeiro lugar, as principais mudanças que estão ocorrendo no plano internacional. As implicações para o Brasil serão discutidas em nosso próximo encontro.

 

1) China: a grande novidade nas últimas duas décadas foi a emergência e a consolidação da China como o maior mercado global. Enquanto o mercado americano, após a crise de 2009, voltou ao patamar de 16-17 milhões de carros, na China as vendas de veículos de passageiros atingiram o pico de quase 25 milhões de unidades, número que recuou no ano passado para algo ligeiramente inferior a 24 milhões. Como usual, a política industrial vigente permitiu que só algumas empresas ocidentais lá tivessem expressão. VW e GM produzem cerca de 4 milhões de unidades, sendo que esta última tem vendido mais e com mais rentabilidade do que nos EUA. A Ford trabalha na faixa de 500 mil veículos por ano, bem como BMW e Daimler. As outras têm menor expressão. Finalmente, e ao contrário de muitos outros produtos, os carros chineses nunca conseguiram penetrar no mundo ocidental.

 

2) EUA: depois de um auge, as vendas começaram a fraquejar no período recente. O maior indicador dessa fraqueza é que existem hoje 8 milhões de contratos de financiamento de autos com atrasos superiores a 90 dias, o que leva os bancos a restringirem o crédito, acelerando a retração. Chamo a atenção para a redução na venda de sedãs, pela franca preferência do consumidor local pelos utilitários (sport utility vehicles – SUVs e picapes). A venda dos primeiros acaba sendo feita apenas com altas doses de descontos para frotistas, o que resulta em baixíssimo ganho por veículo. É nesse produto que o anúncio de fechamento de fábricas pela GM (inclusive enfrentando a fúria de Trump) está concentrado. A empresa americana mais bem posicionada hoje é a Chrysler, que já não produz sedãs há mais de cinco anos, resultado da visão de futuro do falecido CEO, Sergio Marchionne.

 

3) Europa: o mercado europeu sofre várias pressões, a começar pela desaceleração do crescimento econômico. Não é improvável que certas áreas escorreguem para a recessão, e essa é a razão de o Banco Central Europeu (BCE) anunciar na semana passada uma nova rodada de estímulos monetários para bancos e empresas. Na região, há um problema específico que é a limitação aos motores movidos a diesel, consequência tanto das severas exigências de economia no consumo como da tentativa de muitas companhias de manipular testes de avaliação. Isso está abrindo espaço para os carros elétricos. Entretanto, e a título de exemplo, chamo a atenção para a decisão da Nissan de não produzir a nova versão do X-Trail na Inglaterra (tudo a ver com as incertezas do Brexit), preferindo produzir no Japão o veículo com combustível convencional.

 

4) Carro elétrico: esta é a grande mudança para os próximos anos, totalmente ligada à percepção de que temos de combater o aquecimento global. Todas as projeções para os próximos dois anos sugerem ampliação da produção e das vendas desses veículos. O mercado chinês já é, de longe, o maior: absorveu quase 1 milhão de carros no ano passado, e deve passar de 2 milhões em 2020. Existe uma corrida dos grandes grupos pelo desenvolvimento desse tipo de veículo. Abre-se também espaço para novos produtores, sendo a Tesla o caso mais conhecido. Produtores de baterias, como BYD e Panasonic, terão importância crescente. A concorrência será feroz.

 

5) Digitalização: o volume de tecnologia embarcada nos carros cresce há algum tempo. Como os fornecedores são de outra indústria, a margem das grandes montadoras tem sido pressionada. A área com maior crescimento é a de sistemas focados na assistência ao motorista. Não por acaso, o Japão, país com maior proporção de idosos na população, é um dos líderes desse movimento. No limite, esse desenvolvimento levará ao carro autônomo, culminando em transferência de valor da cadeia produtiva para as empresas de tecnologia.

 

As transformações em curso já estão definidas. A vida das montadoras está e continuará a ser muito difícil. Quem serão os novos líderes?

 

O Brasil não escapará dessas mudanças. (O Estado de S. Paulo/José Roberto Mendonça de Barros, economista e sócio da MB Associados)