Agentes econômicos racionais e o fenômeno da corrupção

O Estado de S. Paulo

 

Muitos teóricos e acadêmicos tentam explicar o fenômeno da corrupção e analisar seus motivos, passando por conceitos de ética, moral, cultura e ambiente de negócios. O primeiro passo é reconhecer que a corrupção é inerente ao ser humano e muito antiga, com antecedentes históricos de luta contra corrupção que remontam ao Código de Hamurabi (1754 AC) e aos ensinamentos de Confúcio (século IV AC).

 

Do ponto de vista mais genérico, corrupção é o ato de transformar algo bom em algo ruim (corromper, apodrecer). Na literatura de combate à corrupção, a definição mais utilizada é “o abuso ou mal-uso do poder ou confiança para interesses pessoais, em vez de interesses para os quais o poder ou confiança foram confiados”. O Banco Mundial define como “abuso do cargo público para ganho privado”, e a Transparência Internacional como “abuso do poder confiado a alguém para ganho privado”.

 

A corrupção é definida legalmente de diferentes formas em diferentes países, mas têm um traço comum em todos os casos: ela destrói eficiência econômica, cria disfunções de mercado, distorce concorrência justa e impede desenvolvimento econômico e social. Ao final, coloca em risco o estado de Direito (rule of law) e destrói a confiança nos governos e no ambiente de negócios.

 

Sobre os motivos que levam os indivíduos a praticarem atos de corrupção, a explicação mais plausível é a teoria do agente econômico racional, que defende que o processo decisório humano pondera a probabilidade de detecção e punição, severidade da pena e o benefício esperado. Na teoria dos agentes racionais, os atores buscam maximizar utilidade, e todo comportamento humano pode ser entendido como avaliação de custos e benefícios (análise dos benefícios pessoais versus probabilidade de detecção e custo estimado da punição). Na tomada de decisão, o agente corrupto passa por um processo de “racionalização”, que na verdade serve para preservar a autoimagem de integridade do agente corruptor.

 

Em outras palavras, o indivíduo tende a racionalizar ou achar uma justificativa, para praticar uma conduta sem destruir sua autoimagem. Isso pode ser consciente/intencional, ou não. Exemplos de racionalização de atos corruptos são: (i) distanciamento da vítima ou do dinheiro (violar direitos autorais, comprar um produto falsificado); (ii) comparação com outros (“meus concorrentes fazem”, “se eu não fizer vou falir ou ser passado para trás”); (iii) culpar causas externas (“só estou cumprindo ordens”, “meu salário é muito baixo”, “faz parte do jogo”); ou (iv) minimizar consequências (“não vai prejudicar ninguém”).

 

Do ponto de vista prático, estudos alertam que as questões morais e éticas (dentre elas os atos de corrupção) não são adequadamente refletidas nas decisões do dia-a-dia, baseadas em processos e padrões. Em outras palavras, se a conduta não viola nenhuma regra ou processo, a decisão está correta independentemente do seu mérito. Nessa linha, autores argumentam que o excesso de regulamentação no setor financeiro veio, na verdade, a enfraquecer a ética e a cultura de correção nesse setor, criando uma “zona de conforto moral”. Houve a substituição de padrões éticos pelo simples cumprimento de regras ou compliance técnico, que ofuscou a reputação e a ética. A regulamentação excessiva tira o foco da análise da moralidade da conduta e simplesmente foca no cumprimento de processos e arquétipos regulatórios. Para esses autores, os sistemas regulatórios não são suficientes. É preciso focar em valores, cultura e confiança. Afinal de contas, para uma decisão ser ética, além de lícita, ela deve ser moralmente aceita pela comunidade.

 

Recentemente, o documentário “Dirty Money” da Netflix abordou episódios de fraude, corrupção e lavagem de dinheiro envolvendo a montadora alemã Volkswagen (episódio 1, “Hard NOx”) e o conglomerado financeiro HSB (episódio 4, “Cartel Bank”).

 

No primeiro caso, a Volkswagen teria comercializado e feito campanha publicitária agressiva nos EUA para vender carros a diesel com nova tecnologia TDI que seria “clean, affordable and efficient (good mileage)”.

 

Posteriormente, pesquisadores independentes teriam descoberto que os carros poluíam 50 vezes mais que o limite legal, mas que passavam nos testes das agências certificadoras por possuir um dispositivo que enganava os aparelhos de medição (defeat device). As vendas da Volkswagen estavam em declínio nos EUA e a alta administração na Alemanha havia pressionado os gestores a bolar uma estratégia de retomada de mercado nos EUA e aumentar vendas. Esses gestores desenvolveram o esquema fraudulento da tecnologia TDI para responder à pressão. Quando as suspeitas surgiram, a Volkswagen consistentemente tentou desacreditar os testes independentes, enganar os reguladores, aprimorar ainda mais os defeat devices, e ganhar tempo.

 

Ao final, quando a fraude ficou evidente e os reguladores ameaçaram cessar todas as aprovações de carros Volkswagen nos EUA (efeito econômico desastroso), Volkswagen celebrou um acordo, com confissão, pedido de desculpas, prisão de executivos e multa de US$ 25 bilhões e obrigação de recomprar 500 mil carros com tecnologia TDI.

 

A lição deste caso é que, de fato, a teoria do agente econômico impera no processo decisório de fraudes e corrupções corporativas. No caso Volkswagen, a fraude foi uma decisão racional de custo-benefício por parte da Volkswagen e o benefício excedeu o custo, pois em que pesem as punições, a Volkswagen atingiu seu objetivo estratégico de retomar o mercado americano e se tornar, hoje, o maior fabricante de carros do mundo. É de lamentar que a decisão de custo-benefício do agente econômico racional não considere as externalidades e impactos a terceiros de sua decisão, como risco à vida humana, meio ambiente ou público consumidor.

 

O outro documentário mostrava que o conglomerado HSBC intencionalmente burlava leis internacionais e americanas para oferecer serviços financeiros e lavagem de dinheiro aos cartéis de drogas mexicanos. Como estratégia de expansão no mercado mexicano, HSBC havia adquirido um banco local conhecido por lavar dinheiro de cartéis mexicanos (Banco Bital), mesmo sendo alertado por seus assessores que tal banco teria reputação questionável e baixo nível de segurança bancária (em outras palavras, os benefícios excederiam os riscos do investimento).

 

Posteriormente, documentos internos consistentemente sugeriam que haveria problemas sérios nos controles do HSBC no México, mas a alta administração não tomou providências para não comprometer a lucratividade do banco no país. Funcionários continuavam a manipular controles e sistemas internos para burlar as regras e alertas.

 

Ao final, o Departamento de Justiça dos EUA indiciou o banco, mas acabou por celebrar um acordo (Deferred Prosecution Agreement) aplicando uma multa de US$ 1,8 bilhão, sem punir nenhum executivo. Este valor corresponde a seis semanas de lucro do conglomerado HSBC, o que foi visto pelo mercado e pela mídia como punição muitíssima branda. Mais uma vez, na decisão de custo-benefício do agente econômico, o benefício parece ter superado o custo.

 

Voltando nossa atenção ao Brasil, o economista André Lara Resende chama a atenção para a redução do capital cívico como efeito indireto da corrupção. Capital cívico é o estoque de crenças e valores que estimulam a cooperação entre as pessoas e influencia diretamente o grau de desonestidades e infrações.

 

A confiança é importante para o bom funcionamento da sociedade e desenvolvimento econômico e social. A propensão a cooperar e a confiar não decorrem exclusivamente dos mecanismos legais de prevenção e punição da desonestidade. São traços culturais, forjados ao longo da história, reforçados pela experiência de cooperação bem-sucedida. Nesse contexto, onde o capital cívico e a confiança são altos, o Estado é visto como aliado confiável; de outra forma, onde o capital cívico é baixo, o Estado é visto como criador de dificuldades para os cidadãos e de vantagens para os ocupantes de seus cargos.

 

Nesse contexto, a desonestidade dos governantes tem grande impacto sobre o grau de desonestidade do país. Por isso, a condenação efetiva dos envolvidos na operação Lava-Jato e outros escândalos recentes de corrupção, sem demora e manobras jurídicas e políticas, mostra-se essencial para a redução da percepção de impunidade, bem como para o aumento do capital cívico brasileiro. Dessa forma, haverá o desestímulo à corrupção pelos agentes econômicos, e o nosso tão sonhado desenvolvimento econômico e social. (O Estado de S. Paulo/Thiago Spercel, sócio da área de Societário, Mercado de Capitais e M&A do Machado Meyer Advogados. É bacharel, mestre e doutorando pela USP e mestre pela Columbia Law School, com certificações pelo New York Bar Association e Society of Compliance and Corporate Ethics- Certified Compliance and Ethics Professional – International (CCEP-I)