O Estado de S. Paulo
Dos R$ 209 bilhões emprestados por bancos para o financiamento de carros em 2010 e 2011, houve problemas para receber R$ 38,1 bilhões: R$ 22,8 bilhões são considerados prejuízo, mas as instituições financeiras ainda tentam reaver R$ 15,3 bilhões, de acordo com dados do Banco Central. O período marcou um “boom” no setor automotivo, com desconto no Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) para carros, novos projetos de montadoras e concessão de crédito fácil pelos bancos, que liberaram em média R$ 3.339,66 a cada segundo em financiamentos. Em abril de 2011, dos créditos com prazo superior a 60 meses concedidos para a compra de veículos, 34% tiveram problemas. Em 2017, esse número não chegou a 1%. Ainda hoje há consumidores com carnê para quitar daquele período, e 251 registravam atraso de 30 dias nos pagamentos, segundo o Banco Central.
O custo da festa do crédito fácil para veículos do começo da década foi alto para as instituições financeiras. Dados inéditos do Banco Central mostram que o setor teve problemas para receber R$ 38,1 bilhões em financiamentos concedidos em 2010 e 2011, quando era possível comprar um carro zero, sem entrada, parcelado em até cem vezes. Bancos já desistiram de cobrar R$ 22,8 bilhões e reconheceram o valor como prejuízo, mas o setor ainda trabalha para receber outros R$ 15,3 bilhões emprestados naquela época.
Após o estouro da crise financeira global em 2008, o governo reagiu para tentar amenizar a maré negativa do exterior. Queda de impostos, redução de juros e liberação de dinheiro aos bancos fizeram parte da receita que permitiu ao País passar os primeiros anos da crise com poucos arranhões. Enquanto o mundo colhia cacos, o Brasil dava sinais de vigor e o setor de veículos virou símbolo do Brasil que consumia cada vez mais.
Tanta confiança mudou profundamente a economia. Enquanto consumidores estavam cada vez mais seguros sobre o futuro, montadoras anunciavam bilhões em novos projetos e bancos afrouxavam parâmetros no crédito. Assim, a concessão de financiamentos para veículos atingiu patamar nunca mais alcançado: R$ 105,3 bilhões emprestados em 2010 e outros R$ 102,5 bilhões em 2011. No ano passado, esse valor foi de R$ 87,3 bilhões. Os bancos liberaram em média R$ 3.339,66 a cada segundo em novos financiamentos naquele período.
Essa avalanche de crédito chegou em condições inéditas. Clientes sem histórico bancário conseguiam financiar um carro zero sem entrada e com prazo que superava oito anos. Para convencer indecisos, concessionárias e montadoras investiam pesado em publicidade e o IPI zero dos veículos populares era o grande chamariz.
O preço dessa festa apareceu agora. Dos R$ 209 bilhões emprestados em 12,32 milhões de operações aprovadas em 2010 e 2011, bancos enfrentaram algum tipo de problema com o recebimento de R$ 22,8 bilhões em 2,24 milhões de financiamentos. Ou seja, operações classificadas como “problemáticas” pelo próprio BC corresponderam a 18,2% de todas as que foram feitas.
“Tudo o que se fabricou, vendeu. Com a chegada dos novos consumidores, motivados pela emoção e que não tinham experiência com financiamentos, é óbvio que se esperava um aumento da inadimplência”, diz o presidente da Associação Nacional das Empresas Financeiras das Montadoras, Luiz Montenegro. “Eu prefiro olhar isso como um profundo aprendizado.”
Nesse boom do crédito, o ápice dos problemas parece ter ocorrido em abril de 2011. Dos financiamentos com prazo superior a 60 meses concedidos naquele mês, 34% registraram problemas. Para comparação, o mesmo indicador ficou em 4,6% nos empréstimos de 2016 e não alcança nem 1% do crédito para veículos de 2017.
Diante da situação, o BC anunciou medidas para tentar conter a expansão do crédito: passou a exigir mais capital para que bancos emprestassem em 2010 e criou novas exigências para financiamentos mais longos em 2011. A reação e o início dos problemas nos próprios bancos serviram como um freio de arrumação forçado: prazos foram encurtados e voltou-se a exigir entrada para a compra do carro.
O pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), Mário Mendonça, estudou a evolução do mercado de crédito para veículos nos últimos anos e avalia que os incentivo do governo ao consumo e crédito foram a razão dos problemas. “Esse artificialismo gerou a inadimplência porque as operações não eram sustentáveis”, avalia. “Esse aumento do endividamento acabou sendo ajustado algum tempo depois, quando a inadimplência disparou”.
Nas instituições financeiras, há reconhecimento de que houve exagero na época. Executivos do setor dizem que a régua para aprovar financiamentos “estava frouxa demais”. O resultado apareceu meses à frente, quando o setor teve de aumentar a provisão contra calotes. Representantes do setor dizem, porém, que todos os problemas relevantes gerados nessa época já saíram dos balanços e o mercado voltou a operar normalmente.
Apesar dessa normalidade defendida pelos bancos, ainda há consumidores com carnê a pagar daquela época. Para esses clientes, problemas continuam surgindo. O último dado do BC, de setembro de 2017, indicava 251 financiamentos concedidos em 2010 e 2011 com atraso de 30 dias nos pagamentos. Esse é o primeiro passo para o calote. (O Estado de S. Paulo/Fernando Nakagawa)