O Estado de S. Paulo
Existe cerca de 1 bilhão de automóveis no mundo. Mais do que um meio de transporte, eles estão associados à ideia do livre-arbítrio e da liberdade: com eles podemos ir e vir livremente no momento em que decidimos fazêlo, sem depender de horários e decisões de outras pessoas, com um mínimo de intervenção governamental nas áreas de sinalização e segurança.
Mais do que qualquer outro dos grandes desenvolvimentos tecnológicos do século 19, os automóveis mudaram a estrutura das nossas cidades, da ocupação territorial, com as estradas construídas para eles, e do uso dos recursos naturais. Cerca de um terço de toda a energia usada no mundo é utilizada nos transportes.
É pouco provável, portanto, que outros métodos de locomoção – por mais racionais que sejam sob certos pontos de vista –, como transporte coletivo ou uso de bicicletas, venham a substituir o transporte individual e até mesmo o prazer de dirigir. É por essa razão que o enorme esforço para produzir automóveis autônomos (sem motorista) parece ser mais um esforço de marketing do que um esforço genuíno para resolver os problemas atuais que afetam o tráfego nas grandes cidades.
Todos os automóveis construídos desde o começo do século 20 usam como método de propulsão um motor dentro do qual um combustível, como gasolina, gás ou óleo diesel, é queimado; a força expansiva dos gases produzidos impulsiona o automóvel. Por essa razão são chamados de motores de “combustão interna”. Esse processo não é muito eficiente e produz gases e impurezas contidas nos combustíveis utilizados, que são lançados na atmosfera. Essa poluição acabou por se transformar num dos grandes problemas das grandes metrópoles do mundo, como São Paulo, Beijing, Cidade do México e até Paris.
É por essa razão que se tornou popular na Europa a ideia de abandonar os motores de combustão interna e desenvolver automóveis movidos com a eletricidade armazenada em baterias. Esse é um caso clássi- co em que se está lançando fora não só a água do banho, mas também o próprio bebê que está na banheira.
Os motores atuais de combustão interna têm problemas, mas os automóveis elétricos têm igualmente problemas tecnológicos, alguns dos quais ainda nem conhecemos completamente.
O mais sério deles é que não resolve o problema do aquecimento global. A queima de gasolina e óleo diesel – além dos poluentes usuais, como particulados, óxidos de enxofre e outros gases responsáveis pela poluição local – emite os gases responsáveis pelo aquecimento global. Esse é também o caso quando gás é o combustível.
Um automóvel que é movido pela eletricidade armazenada numa bateria não emite esses gases, o que cria a ilusão de que é limpo e silencioso. No entretanto, esses gases e poluentes são emitidos nas usinas onde a eletricidade é produzida e usada para carregar baterias.
Esse problema pode ser resolvido usando eletricidade produzida com fontes renováveis, como hidreletricidade ou energia solar. Mas na grande maioria dos países combustíveis fósseis são usados para produzir eletricidade e vai ser difícil mudar isso, por mais desejável que seja. São poucos os países como a Noruega e o Brasil, onde energias renováveis são dominantes na produção de eletricidade.
A solução mais realista é usar os motores de combustão interna com um combustível não fóssil e que seja produzido com energia solar. Esse é o caso do etanol (álcool) produzido a partir da cana-de-açúcar, que é, na realidade, energia solar convertida num líquido. O mesmo se pode fazer com milho, como nos Estados Unidos, mas não com menor eficiência.
Usar etanol para substituir gasolina é, de fato, uma grande solução e está sendo feito no Brasil e nos Estados Unidos. Mas enfrentou sempre muita resistência, principalmente na Europa, que não tem terra nem clima para produzir cana-deaçúcar e milho nas quantidades necessárias e teria de importar etanol dos países tropicais.
No Brasil o etanol chegou a substituir cerca de 50% da gasolina, graças à adoção de motores flexfuel, que funcionam com qualquer mistura de etanol e gasolina. Nos Estados Unidos, contudo, nunca atingiu mais de 10%, apesar de esse país ter um enorme mercado para etanol, pois lá existe quase um automóvel para cada habitante, numa população de cerca de 310 milhões de pessoas.
Automóveis flexfuel são poucos nos Estados Unidos por causa da resistência das montadoras e das empresas produtoras de gasolina. Além disso, as regras adotadas pelas autoridades ambientais americanas criaram a barreira dos 10% na mistura, com base em considerações discutíveis, como a de que levou a aumento nas emissões de poluentes e desgaste nos motores. Se ela for elevada para 20%, o que é perfeitamente factível – no Brasil ela é de 27,5% –, o consumo de etanol nos Estados Unidos dobraria e se abriria um grande mercado para o álcool do Brasil, de vez que não há mais área agrícola naquele país para acomodar um aumento muito grande da produção de milho.
Além disso, a China está acordando para o problema e acaba de lançar novas metas ambiciosas de uso de etanol para reduzir a poluição urbana no país. Etanol de milho, usado em nove províncias com 10% na mistura, passará a ser usado em todas as 21 províncias chinesas.
Os motores que usam etanol ainda podem e devem ser melhorados, o que está sendo feito em programas apoiados pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estados de São Paulo (Fapesp). Além disso, no entanto, as montadoras brasileiras e o próprio governo federal deveriam conscientizar-se com a ideia de que o entusiasmo pelos automóveis elétricos pode não durar, como já se viu no passado com outras tecnologias, e que temos no Brasil um poderoso instrumento para resolver os problemas ambientais causados pelos automóveis.
Entusiasmo por carros elétricos pode não durar, como já se viu com outras tecnologias. (O Estado de S. Paulo/José Goldemberg, professor emérito da USP, presidente da FAPESP)