Carretera Panamericana

O Estado de S. Paulo

 

Entre 1928 e 1938, três brasileiros desbravaram 27.631 km de estradas, matas e rios de 15 países nas três Américas. Em dois Fords T, eles foram do Rio a Nova York com a missão de projetar a Estrada Pan-Americana. Uma aventura que marcou época, mas é desconhecida no Brasil.

 

Henry Ford já era um dos homens mais ricos e famosos do mundo quando, em junho de 1937, fez uma proposta a Leônidas Borges de Oliveira, um paulista de Descalvado, tenente do Exército brasileiro. O pioneiro da indústria automobilística queria guardar em seu museu em Detroit os dois carros da Ford que haviam transportado até os Estados Unidos não só Oliveira como também o observador Francisco Lopes da Cruz e o mecânico Giuseppe Mário Fava. E pagaria por eles o valor que fosse.

 

Oliveira, porém, se mostrou irredutível. Era seu dever, como comandante da Expedição Automobilística Brasileira para Estrada Pan-Americana – ou Carretera Panamericana, como se diz em espanhol –, trazer de volta os dois veículos modelo T que haviam desbravado 27.631 km de estradas, picadas, matas, rios e riachos de 15 países nas três Américas, incluindo partes dos Andes e da Amazônia.

 

A aventura começara mais de nove anos antes, em 16 de abril de 1928, quando o trio partiu do Rio de Janeiro rumo aos EUA. Oliveira era o chefe da expedição, Lopes da Cruz, o responsável pelos equipamentos de navegação e Fava, o responsável pelo funcionamento dos dois Fords, batizados de Brasil e São Paulo.

 

Imbuídos do ideal do Pan-Americanismo, em voga na época, e estimulados pela política do então presidente Washington Luís, cujo lema era “Governar é abrir estradas”, os três conquistadores tinham como missão descobrir, projetar e abrir a rota onde futuramente seria construída uma rodovia interligando as Américas. “Nenhum dos três tinha noção da distância e das dificuldades que enfrentariam, mas acabaram fazendo o maior projeto de engenharia do século 20”, resume José Roberto Faraco Braga, o Beto Braga, que lançou em 2011 o livro

 

Boa parte do caminho foi aberta a pás, picaretas e bananas de dinamite. Oliveira saiu do Brasil com cartas de recomendação do ministro das Relações Exteriores, Octávio Mangabeira, e do embaixador americano Edwin Morgan. Ao chegar a um novo país, o trio costumava ir até o quartel local recrutar mão de obra. Militares, policiais e civis ajudaram a abrir caminhos. “Em alguns locais foram formados verdadeiros batalhões”, conta Braga. Trilhas incas e rotas de colonizadores espanhóis eram anexadas ao traçado.

 

Pelos 15 países por onde passaram, os expedicionários foram tratados como visitas ilustres e recebidos por multidões. Jornais costumavam avisar de sua chegada com antecedência e apregoavam com entusiasmo o progresso que a rodovia poderia trazer. Com isso, o trio – que entre uma cidade e outra enfrentava de frio a acidentes, de mosquitos a ataques de onça, de doenças a falta de combustível – adotava por alguns dias roupa social, charutos e pose de celebridade em coquetéis e jantares oferecidos por autoridades. Neles, muitas vezes também recebiam dinheiro, ajuda para manutenção do carro e serviços de correio, telégrafo e confecção de mapas.

 

Em Washington, ponto final da expedição, Oliveira, Fava e Lopes da Cruz foram recebidos por Franklin Delano Roosevelt, presidente dos EUA, a quem apresentaram um plano para viabilizar financeiramente a estrada. A foto do encontro na Casa Branca pode ser acessada no site da biblioteca do Congresso americano (www.loc.gov).

 

Os brasileiros também se reuniram e posaram para fotos com os ministros Cordel Hull (Estado), Harry Woodring (Defesa) e várias outras autoridades. Em Cleveland, a autorização para dirigir foi assinada pelo “intocável” Eliot Ness, o agente que perseguiu o mafioso Al Capone.

 

Após quase dois anos nos EUA, os três embarcaram em Nova York de volta para o Rio de Janeiro com os dois Ford T. Chegaram 20 dias depois, em 25 de maio de 1938. Então ministro das Relações Exteriores, Oswaldo Aranha os levou para encontro com Getúlio Vargas no Palácio do Catete. Os expedicionários deram ao chefe do Estado Novo cópia do projeto da estrada e receberam uma homenagem: ruas do Rio de Janeiro ganharam o nome da terra natal de cada um deles. Em Olaria, fica a Rua Bariri. No número 251, funciona o estádio do Olaria Atlético Clube. Em Madureira, está a Travessa Descalvado e, no bairro de Praça Seca, a Rua Florianópolis. Muitas décadas depois, em 2010, Oliveira virou nome de rua em Descalvado; em 2014, foi a vez de Lopes da Cruz batizar via de Mogi das Cruzes, onde viveu e morreu.

 

Em São Paulo, os expedicionários foram tema de reportagens e receberam convites para contar suas aventuras em entidades, como a Faculdade de Medicina e o Automóvel Club. Com o passar dos meses, no entanto, a empolgação causada pela expedição foi perdendo força e os expedicionários tiveram de encarar uma nova vida. Por indicação do marechal Cândido Rondon, Oliveira foi nomeado cônsul privativo do Brasil na Bolívia, cargo que ocupou por mais de 20 anos, até morrer, em 1965. Braga conta que o projeto do tenente, na verdade, era conseguir um trabalho no México, onde esperava dar início à construção da estrada. Já Lopes da Cruz e Fava rumaram para trabalhos no interior do País. (O Estado de S. Paulo/Luciana Garbin)