O Estado de S. Paulo
Após cinco anos de tramitação na Câmara, dois pareceres negativos em comissões técnicas elaborados por deputados que são hoje ministros da gestão Temer e posicionamentos contrários de diversos setores empresariais, governamentais e de pesquisa, vai à votação nesta semana, com chances de vitória, um projeto de lei que autoriza a fabricação e a venda de carros leves a diesel no Brasil.
Hoje o Brasil só usa o combustível considerado altamente poluente em caminhões, ônibus e em carros comerciais leves. Se aprovado, o projeto permitiria que outros veículos leves também o usassem o combustível, o que, segundo especialistas, pode levar a mais poluição do ar e mais mortes precoces por doenças causadas por material particulado fino (“fumaça preta”) e óxidos de nitrogênio.
Apesar das negativas anteriores – pareceres dos deputados (PVMA), na Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável, e (DEMPE), na Comissão de Desenvolvimento Econômico, Indústria e Comércio, hoje respectivamente ministros do Meio Ambiente e da Educação –, o tema voltou à pauta no ano passado em comissão especial da Câmara criada pelo então presidente da Casa, Eduardo Cunha (PMDBRJ). A comissão tem caráter terminativo, ou seja, se for aprovado, o projeto de lei vai direto para o plenário do Senado.
Audiências públicas realizadas entre outubro e março pela comissão contaram com especialistas das mais diversas áreas: da fabricação de automóveis e peças ao controle ambiental; da produção de combustíveis a pesquisadores de saúde, além dos ministérios do Meio Ambiente e Minas e Energia, a Agência Nacional de Petróleo, a Petrobrás e entidades ligadas ao etanol e ao biodiesel.
Em geral se ouviu mais contras que prós: mesmo na versão mais recente da limitação de poluentes, estabelecida pelo Programa de Controle de Emissões Veiculares (Proconve), os veículos a diesel no Brasil ainda emitem mais óxidos de nitrogênio e material particulado que os automóveis só a gasolina ou flex – e ainda numa –, o que pode aumentar casos de doenças respiratórias e cardiovasculares; por outro lado, o Brasil ainda depende de importar diesel, de modo que um aumento na demanda poderia piorar a balança comercial.
O parecer do relator – o (PSDPR) –, no entanto, recomendou a aprovação da lei em 10 de maio. A expectativa é que a sugestão seria acatada pela comissão, mas um voto em separado contrário, dos deputados Bruno Covas e Ricardo Trípoli (ambos do PSDBSP), seguido de um pedido de adiamento, suspendeu a votação por duas semanas. Deve ser votado nesta terça, 14, ou quartafeira, 15.
Em entrevista ao Estado, Roman defendeu o direito de escolha ao consumidor. “Enquanto hoje no Brasil, com um litro de etanol se roda 8 quilômetros, um Peugeot 308 roda 50 km com um litro de diesel, que é o recorde. O New Fiesta roda 31 km. O Audi A6 roda 28 km. Não dá para tirar o direito do cidadão de ter livre escolha de pagar 8 centavos por quilômetro rodado, em vez dos quarenta e cinco centavos da gasolina”.
O preço mais baixo do diesel ocorre hoje no País porque os Estados cobram menos impostos sobre o combustível por seu caráter social, uma vez que ele é voltado, em sua maioria, para o transporte público e de carga por caminhões. Do valor dele, só 20% vem da tributação, contra 34% na gasolina e 23% no etanol, conforme informou um técnico do em audiência pública.
Segundo ele, a liberação para veículos leves não faria sentido nem do ponto de vista econômico, uma vez que a necessidade de importação do óleo vem crescendo nos últimos anos mesmo com o aumento da adição de biodiesel ao diesel mineral, nem do ambiental, pelo impacto na qualidade do ar.
O único argumento favorável se limita à escolha do consumidor, quando há repercussões negativas econômicas, energéticas, ambientais que me deixaram convicto que é algo prejudicial”, Bruno Covas.
“A Europa (depois do escândalo da Volkswagen) começa a discutir a restrição desses carros, culpando o diesel pela poluição das regiões metropolitanas. E nós vamos receber o lixo tecnológico que vai ser proibido lá?”, questionou ao Estado o deputado Bruno Covas.
Potencial de mortes
Roman, em seu relatório, diz que, em relação ao “suposto expressivo aumento de emissões de poluentes”, o “receio parece exagerado”. Não é o que consideram pesquisadores da área. “Houve nos últimos anos uma redução do teor de enxofre no diesel, com o aumento gradativo da oferta do diesel S10, em substituição ao S500, e com a obrigação de os carros novos terem catalizador. Mas não dá para dizer que o diesel com baixo teor de enxofre resolveu o problema da poluição. Reduziu um pouco, mas ainda é significativa e ainda bem maior que a proveniente de carros movidos a outros combustível”, explica David Tsai, pesquisador do Instituto Energia e Meio Ambiente.
“Apesar de todo progresso com o Proconve, que vem reduzindo as emissões veiculares no Brasil, as taxas ainda são maiores do que as recomendadas pela Organização Mundial da Saúde. Então qualquer acréscimo só pioraria essas condições”, complementa Cristiano Façanha, do Conselho International pelo Transporte Limpo (ICCT). A organização internacional foi a primeira a observar que as emissões de veículos a diesel da Volkswagen em laboratório e nas condições reais tinham diferença, o que levou os Estados Unidos a desvendarem o “dieselgate” no ano passado.
“Atualmente os carros a diesel representam cerca de 6% das vendas de veículos novos no Brasil, mas são responsáveis por 30% das emissões de NOx e por 65% do material particulado fino. São os poluentes mais nocivos à saúde humana”, diz.
Em uma das audiências públicas, técnicos da lembraram que a OMS, em 2012, passou a classificar a emissão de veículos diesel como carcinogênica para humanos.
Façanha e colegas do ICCT fizeram uma o mercado com a liberação de veículos leve a diesel no Brasil. Em um cenário moderado, a presença de carros a diesel subiria dos atuais 6% da parcela das vendas de veículos novos para 15% em 2030. Num cenário mais agressivo, que eles disseram ser consistente com padrões europeus dos últimos anos, poderia chegar a 45% em 2030.
A partir dessas projeções eles calcularam quanto material particulado seria emitido a mais pelos carros novos e o impacto que isso poderia ter na qualidade do ar e, por consequência, na saúde humana. Segundo o estudo, a liberação teria potencial para provocar de 32 mil a 150 mil mortes prematuras até 2050.
A estimativa de expansão da frota, porém, é minimizada pelos defensores do projeto de lei. Roman disse que considerou um aumento do consumo de diesel de 0,75% até 2022. A Aprove Diesel, entidade que está por trás do lobby a favor também falou em menos de 1%.
Etanol
A pressão econômica contrário vem do setor canavieiro. O Ministério de Minas e Energia, em audiência pública, ressaltou que a presença de carros a diesel poderia afetar, o consumo de etanol, opção menos poluente e nacional.
“É um projeto que vai contra tudo o que a gente tem pregado de buscar uma matriz energética cada vez mais limpa no Brasil. É o País que tem o maior programa de substituição de combustíveis fósseis por renováveis no mundo, com o etanol”, Eduardo Leão, diretor-executivo da Única.
“O Brasil se comprometeu no Acordo de Paris (de redução das emissões de gases de efeito estufa) a dobrar o consumo de etanol até 2030. Esse projeto vai contra isso”, disse ao Estado Eduardo Leão, diretor-executivo da União da Agroindústria Canavieira do Estado de São Paulo (Única).
Essa também foi a posição colocada pela Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea), que se declarou contrária a aprovação do uso do diesel em automóveis. O presidente da entidade, Antonio Megale, afirma que o País tem o etanol, menos poluente que os demais combustíveis. Além disso, alega que a indústria automobilística brasileira já investiu muito no desenvolvimento da tecnologia dos carros flex (rodam com etanol ou gasolina) e na melhora da eficiência energética de seus produtos.
“Não dá para fazer uma mudança dessas no meio do caminho, pois seriam necessários novos investimentos e a alteração da matriz energética”, afirma Megale. Ele diz ainda que, inicialmente, os motores a diesel teriam de ser importados, o que vai “contra os esforços do fortalecimento da produção local”, um dos objetivos do programa InovarAuto, que também estabeleceu metas de redução de consumo a serem atingidas pelos novos carros até 2017.
Segundo Megale, a posição contrária ao projeto é da “maioria esmagadora” dos associados da Anfavea, mas ele admite que algumas montadoras são favoráveis individualmente. Conforme o Estado apurou, é o caso das europeias Renault e Peugeot.
Lobby a favor
O principal lobby a favor da liberação de carros a diesel no Brasil vem da Aprove Diesel, entidade criada há três anos que reúne grandes fabricantes de motores e componentes, como Bosch e Delphi. Para eles, o fim da proibição do uso do combustível para automóveis não deve alterar significativamente a matriz energética brasileira. Simulações feitas por eles indicam que, até 2025, o País teria no máximo 800 mil carros de médio porte a diesel, o equivalente a 2% da frota total brasileira hoje. O impacto no consumo atual seria inferior a 1%.
Hoje, 9,8% da frota nacional (de 42,6 milhões de veículos) é movida a diesel, a maior parte formada por caminhões e ônibus, mas também há picapes e utilitários-esportivos, segundo estudo do Sindicato Nacional da Indústria de Componentes para Veículos Automotivos (Sindipeças).
O diretor da Aprove Diesel, Mário Massagardi, diz que o uso do combustível só é vantajoso para quem percorre mais de 20 mil km por ano, normalmente taxistas e frotistas. Um carro a diesel normalmente custa 10% a 30% mais caro que um flex ou a gasolina. “O segmento de carros pequenos não seria afetado”, diz.
O jipe Renegade, fabricado pela Fiat/Chrysler em Goiana (PE), custa R$ 110 mil na versão a diesel e R$ 83,3 mil na flex. A Land Rover vende o importado Discovery Sport a diesel por R$ 258,8 mil e a versão a gasolina sai por R$ 234,6 mil. O imposto a ser pago a mais na diferença do preço compensaria o subsídio dado pelo governo ao diesel.
Luso Ventura, diretor da Sociedade de Engenheiros da Mobilidade (SAE Brasil), defende que ao longo dos anos, os motores desses carros e o próprio diesel passaram por diversas modificações e hoje já não poluem como antes. Houve também um lobby da União Brasileira do Biodiesel e Bioquerosene (Ubrabio), que entendeu que poderia aumentar a fatia de biodiesel no diesel para atender a esses carros, ajudando a reduzir impactos no meio ambiente, assim como a necessidade de importação do produto.
Dieselgate
A questão do diesel mais limpo, contudo, gera dúvidas no mundo todo atualmente em razão do escândalo que envolveu a marca alemã Volkswagen, conhecido como “dieselgate”. Um software instalado em 11 milhões de carros da marca em todo o mundo istorce dados de emissões de gases poluentes, principalmente de óxidos de nitrogênio (NOx).
A fraude foi desenvolvida pela Volkswagen especialmente para burlar testes nos Estados Unidos, onde a legislação de emissões é mais rígida. Também há investigações envolvendo outras empresas. A Volkswagen já iniciou na Europa recall para trocar o software. (O Estado de S. Paulo/Giovana Girardi e Cleide Silva)