O Estado de S. Paulo
Um BMW esportivo custava R$ 100 mil. O Z3, sabe? Antecessor do Z4, cujo lançamento mundial ocorreu em 2002. E as pessoas não estavam dispostas a abandonar o celular nem na hora de dirigir. Como hoje. Só que eram ligações, não mensagens de texto ou de voz via WhatsApp. Digitar: só se fosse torpedo SMS, mas ninguém fazia isso enquanto estava guiando.
“Já tem até lei que proíbe isso”, diz Alma, personagem de Marieta Severo, sobre o hábito de falar ao telefone ao volante.
E é um acidente provocado por esse hábito, que virou um problemão nos dias de hoje, o ponto principal do primeiro capítulo de “Laços de Família”, novela que estreou no fim de 1999, mas teve a maior parte de sua trama exibida em 2000. Por estar conversando ao telefone com sua funcionária, enquanto dirigia, Helena (Vera Fischer) acaba batendo seu Ford Explorer no novíssimo BMW Z3 de Edu, um Reinaldo Gianecchini estreante e nada convincente – quem diria que ele se transformaria em um grande ator.
A reexibição de “Laços de Família” estreou na última segunda-feira (15) no canal a cabo Viva e, como é bom rever essa obra de Manoel Carlos. Maneco, como é chamado carinhosamente o autor, é um romancista de costumes, e já foi mestre em transportar para as telinhas os hábitos da sociedade. Assim, criou, em suas novelas, um ótimo documentário da época em que elas foram exibidas.
Rever “Laços” me remeteu ao passado. Surgiram lembranças de como era a vida naquela época. Eu tinha 18 anos. Caloura na PUC-SP, no curso de jornalismo. Cheia de sonhos, esperanças e muitas ambições.
Parece-me que também cheio de sonhos, esperanças e ambições estava o Brasil, otimista com a estabilidade econômica conquistada após períodos sombrios consecutivos: ditadura militar, catástrofes econômicas, governos corruptos. Tínhamos uma moeda forte, chances para as iniciativas individuais e muitas grandes empresas chegando ao Brasil.
Nesses 16 anos, ganhamos muito. Muitas facilidades. Mas perdemos tanto. O principal? As relações humanas existiam no plano real. Hoje, estão cada vez mais no mundo virtual.
Listei alguns aspectos que me chamaram a atenção no primeiro capítulo da novela, e que mostram as mudanças de nossa sociedade do início dos anos 2000 para cá.
Legislação
Já existia o problema do celular ao volante. O que mudou? Agora, com os smartphones e seus diversos aplicativos, o hábito virou quase um problema de segurança pública. Com Waze, WhatsApp, Instagram, etc, as pessoas se recusam a abandonar seus telefones, o que torna o trânsito ainda mais caótico do que já é e aumenta as ocorrências de acidentes.
A legislação, porém, não acompanhou essa evolução. Como em 2000, é proibido usar o celular ao dirigir. Em contrapartida, houve melhorias nas regras quanto ao transporte de crianças no carro. Agora, há dispositivos adequados para os pequenos, e esses acessórios mudam conforme a idade e tamanho (assentos de elevação, cadeirinhas, etc). Naquela época, a ordem era transportar os pequenos no banco de trás.
Há uma cena, inclusive, que mostra uma intrometida Helena, chata como toda Helena de Manoel Carlos, bancando a guardiã do politicamente correto. No trânsito, ela aborda uma outra motorista, que levava uma criança na frente do carro, para chamar sua atenção: “É perigoso, moça. Criança tem de ir atrás”, fala à interlocutora, com ares meio agressivos.
Relações humanas
O comportamento de Helena em relação à motorista desconhecida talvez reflita o início da intolerância que veio a dominar nossa sociedade, algo potencializado pelas redes sociais. No mundo cada vez mais virtual, as pessoas têm mais voz e, sem o medo sempre despertado pelo cara a cara, falam o que querem e agridem sem pudores.
Atrás de seu computador, tablet ou smartphone, todo mundo é valente, e virou algo comum as pessoas acharem que podem não apenas opinar sobre a vida alheia – seja a de uma pessoa conhecida ou não -, como também agredir o alvo da crítica.
E quanto ao exibicionismo? Hoje, as pessoas não vão a uma festa, uma viagem, um show ou um restaurante, sem registrar devidamente o fato nas redes sociais. Não importa a realidade, apenas a impressão. A imagem de sucesso. Só vale ser popular no Instagram.
Em 2000? Naquela época, quem queria falar algo, bom ou ruim, tinha de falar na cara. Precisando conversar com a mãe, irmão, marido, namorado, amigo? Só por telefone, ouvindo a voz e sentindo as reações do interlocutor. Ou marcando um encontro. Sem covardia.
E, assim, o mundo parecia mais tolerante, mais inocente, mais romântico, até. E mais divertido. Sem possibilidade de postar, as pessoas faziam algo porque gostavam, e para se divertirem. Apenas isso. E viam o mundo com seus próprios olhos, não pelas lentes do smartphone.
Economia
Após o acidente com Helena, Edu conta a ela, bravo, que pagou R$ 100 mil no Z3. Hoje, um Z4, seu sucessor, custa R$ 257.950. Uma bela diferença, não? No mesmo ano, eu ganhei meu primeiro carro, um Chevrolet Celta, pelo qual foi pago R$ 10 mil. Atualmente, um veículo de entrada, sem nenhum equipamento de conforto, sai por R$ 30 mil.
Há quem diga que o segundo governo Fernando Henrique foi ruim. E que houve uma crise. No primeiro capítulo de “Laços”, mostra-se que estava bastante difícil para os recém-formados ingressarem no mercado de trabalho. O filho mais velho de Helena, Fred, é engenheiro, e não consegue emprego.
De todo modo, me lembro que aquela época era bastante próspera, sem inflação desenfreada e com a moeda nacional valorizada.
Foi a época de privatizações que permitiram às pessoas não só terem telefone fixo, mas também celular. E também da chegada das montadoras chamadas newcomers, encerrando a hegemonia do quarteto VW/Fiat/Chevrolet/Ford. Até Audi e Mercedes começaram a produzir carros aqui – projeto que abandonaram em meados daquela década, e que agora retomam.
Lembro-me, também, de pagar menos de R$ 1 pela coca-cola que tomava enquanto assistia “Laços de Família”. E de gastar cerca de R$ 50 por um jantar em restaurante de ótimo nível. No supermercado? O valor total da compra semanal nunca passava dos R$ 50, e os produtos não são tão diferentes dos que adquiro hoje, quando gasto o triplo.
Claro que houve inflação, não só aqui, mas também em países desenvolvidos. Mas a impressão, naquela época, era de que nosso dinheiro valia mais do que hoje. (O Estado de S. Paulo/Rafaela Borges)